“Moscou
não é Rússia”, dizem quase todos os russos que conheci por aqui, numa espécie
de consolo. É verdade que a inexistência do artigo na língua russa pode gerar
tanto o sentido de “Moscou não é Rússia” quanto “Moscou não é A Rússia”, mas no
caso não importa muito: o principal é que há alguma esperança à pessoa educada
e mais ou menos gentil que queira se relacionar com a população desse país.
Porque se depender de Moscou, bem... estará perdido. Eu mesmo, nas situações
mais corriqueiras, como ao entregar um casaco, pegar uma condução, esperar numa
fila, já passei por desgostos mortais, daqueles que a gente se questiona o que
está fazendo aqui e o que foi exatamente o que fez para merecer tanta
grosseria.
No fundo cada um tem lá seu pecado, mas
mesmo assim Moscou é cruel demais. Coisa de capital, dizem alguns, se lembrando
do senso comum sobre Paris e mesmo sobre os jeitos bruscos do fluminense
regular. Mas aqui não é só a cara feia nas situações corriqueiras, em que é
realmente difícil e quase beatífico manter o bom humor, mas também nas mais simples
e tranquilas, que até mesmo em São Paulo nos acostumamos a contar, se não com a
gentileza, pelo menos com a cordialidade do outro ser humano. Mas o moscovita
dispensa cordialidades: ele sabe o que quer, quando quer e como quer, e se por
alguma razão esse objetivo final é atrapalhado, é óbvio que o outro ser humano
é digno de desprezo. Na entrada dos metrôs, nas filas dos supermercados, nos
restaurantes: é preciso estar sempre pronto para a guerra. Você talvez ignore o
seu crime, mas o moscovita estressado de trás sabe muito bem como você
atrapalha a vida dele. O único lado bom dessa incrível falta de paciência, que
já deve imperar aqui há muitos anos, é que como todo mundo já se acostumou a
receber patadas dia e noite ninguém mais se incomoda com nada. Sob o véu da
impaciência, a paciência do moscovita é infinita. A grosseria não significa que
ele te odeia: é a única forma que ele tem de se relacionar.
Estamos, eu e minha companheira brasileira,
no monastério de Novodevitche, não muito longe da universidade. O monastério é
realmente lindo, construído no século XVIII, e a primavera fez com que se
tornasse um dos lugares mais agradáveis por onde já andei aqui – relva fresca,
flores nascendo, passarinhos voltando, popes barbudos filosofando antes da
missa... infelizmente, boa parte dos edifícios é fechado para a visitação.
Inclusive uma torre enorme, gigantesca, onde ficam os sinos, e de onde
certamente pode-se ter uma vista fenomenal da parte sul de Moscou. Que era fechado
à visitação, bem, não havia dúvidas. Mas... quem sabe uma conversinha com a
pessoa certa não ajudasse?
- Meu senhor, com licença... será que a
gente não pode entrar ali naquela torre grande ali?
O guardinha só olhou para nossa cara, com
um misto de desprezo e indiferença, respirou fundo e respondeu:
- Ali é a torre do sino. O senhor é
sineiro?
- Pelo que eu sei, não
- Então. Não.
Eis uma forma original de dizer não. E o
passeio acabou ali mesmo.
Agora estamos na condução pública. É
difícil, quase impossível, explicar num único texto todas as vicissitudes do
transporte público terrestre dessa cidade, até porque eu mesmo quase não o uso,
a não ser no pequeno trecho que separa a estação de metrô do alojamento em que
moro. Cabe apenas dizer: confuso, como o próprio trânsito. E assim sendo é
natural que se pergunte de vez em quando ao motorista qual o trajeto do ônibus,
se passa no lugar tal, enfim. Mas essas coisas, a meu ver, exigem um mínimo de
educação e respeito que o moscovita médio, aparentemente, desconhece.
Entra uma moça cheia de dengos no ônibus,
salto alto, bolsa enorme, a típica boneca, e se dirige ao motorista, com a mais
irritante das vozes.
- Por favor, esse ônibus passa no prédio
central da universidade?
Cabe explicar que o motorista é separado do
convívio público por uma grossa parede de vidro, na qual abre uma pequena
janelinha somente para pegar dinheiro e dar bilhetes. O sonolento motorista,
atrás de espessos bigodes, vendo que alguém se dirigia a sua pessoa não com
dinheiro mas com perguntas, pôs-se a abrir a janelinha para tentar escutar. Mas
a moça era implacável.
- Por favor, eu disse, esse ônibus passa ou
não passa no prédio central da universidade?
- Ehn? – resmungou o motorista de lá de
dentro
- Passa na universidade?! É já a terceira vez
que eu pergunto, vou ter que perguntar mais outra? A pergunta é difícil?!
Na porta, estava tudo escrito até que com
clareza, sem o que eu mesmo nem teria entrado naquele ônibus – eu ia para lá
também. O motorista não perdeu a chance.
- Tenha a bondade, a senhorita sabe ler?
- Ehn?
- Está tudo escrito na porta. Não se dirija
ao motorista.
E fechou a janelinha. Cutuquei a moça e
expliquei que sim, passava. Com pena da gente dessa cidade, tentei contar
quantos dias ainda tinha até minha passagem de volta.
Na fila do refeitório, cinco sujeitos se
intrometem na minha frente sem dizer nada, e quando eu reclamo, me xingam.
Depois uma moça me olha feio quando eu finalmente consigo sentar numa mesa suja
de canto, porque aparentemente ela tinha visto primeiro. Quando tento ser
gentil, claro, sem ceder nem um dedo o meu suado lugarzinho, ela vira as costas
e ri com a amiga da minha cara. Ai no elevador, enfurnado entre mais dez
pessoas, sufocado com a abundância de perfumes com que as russas se banham toda
manhã e a abundância de suor que os russos emitem naturalmente, percebo com
desespero o meu andar se aproximando. E eu no fundo do elevador.
- Com licença, posso passar?
- Pode tentar.
Armei meu cotovelo como um broquel, e abri
caminho nas selvagens terras do elevador eslavo. Mas ainda assim fui pedindo
desculpas, que eram recebidas com a maior das indiferenças.
“A solução é fazer como eles”, pensei certa
tarde, depois de quase levar uma portada na entrada do metrô, num dia
particularmente ruim. “Pelo menos enquanto eu tiver que sobreviver nesse
lugar”.
Antes do teatro, passo na chapelaria para
deixar meu casaco. Ninguém me perguntou se eu de fato quero deixá-lo lá – são
as regras, é assim em todo canto, embora eu mesmo preferisse, talvez,
carregá-lo comigo para o balcão. Já sabia de antemão que meu casaco não tem com
que se pendurar, fonte de constantes aborrecimentos em teatros, já que os
malacos das chapelarias sempre cobram vinte rublos pelo aluguel do cabide. Mas
nesse dia, seja porque não tivesse vinte rublos, seja porque estivesse afim de
confusão, fui de cara explicando.
- Não precisa de cabide.
- Como? – olhou uma velha enrugada feito
uma meia, com uma voz roufenha e desagradável.
- Cabide, não precisa, ok?
- Sei, não precisa, e como é que eu penduro
isso daqui, ein?
- Muito simples – respirei fundo -, é só
pendurar. Você pega, faz assim e – pronto! Está pendurado. Quer que eu te
mostre?
- Por favor – respondeu a velha com raiva,
e abriu a cancela da chapelaria.
Entrei, peguei meu casaco, olhei pelo
número onde devia pendurá-lo e pendurei-o, segundo as minhas próprias
explicações. Depois agradeci e fui ao espetáculo, temendo somente encontrar um
pote de graxa derramado no meu bolso quando voltasse para buscá-lo. Mas não só
não achei graxa como, percebi, fui tratado com mil vezes mais amabilidade,
respeito, até, diria, do que quando cheguei. “É assim que eles se entendem!”
Fui pensando, no bonde. E depois pus-me a contar novamente os dias até minha
partida, se não da Rússia, ao menos de Moscou, nem que fosse para ir à cidade
ao lado, ou qualquer lugar de alma um pouco mais socialista, nessa pequena
fraternidade das situações cotidianas, que se não abole a miséria, a fome e o
trabalho mecânico, pelo menos colore com tons humanos o vazio das situações
corriqueiras, das quais muitos já saem para o alcoolismo, o suicídio ou para a
total indiferença.
Pedro, os moscovitas são realmente insuportáveis. Meus vinte dias em Moscou me fizeram concluir isso. São Petersburgo é melhorzinho. Fiquei pensando na imensa diferença entre a Rússia que eu vi e aquela que De Sica mostra em "Os girassóis da Rússia". Haja amor pela cultura dos caras para tolerar imensa falta de sociabilidade. Abração.
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