Como
muitas outras partes ativas da cultura, e, talvez, como a sua parte mais
fundamental, a palavra acompanha e encarna as transformações da sociedade que a
carrega. Novas experiências exigem novas palavras, e as antiquadas envelhecem
consigo os seus termos correspondentes.
Não
me demoro nessas especulações: não sou nenhum filólogo alemão do século XVIII;
aliás, esquecendo o tempo: nem sequer filólogo, termo um pouquinho antiquado,
mas ainda em uso por aqui, e muito menos alemão, apesar de meu convívio
constante com essa gente muito boa, que vem às chusmas aqui para Moscou. Minha
observação é inclusive pontual, sendo, já que falamos de forma e de tempo, até
compatível com o estilo do anúncio
“PROCURA-SE
FORMA OU PRONOME PARA RELAÇÕES FORMAIS”
Poder-se-ia
colocá-lo n’”A Gazeta da língua russa”, se tal gazeta existisse, e até mesmo
organizar um concurso, mostrando os finalistas em rede nacional, como em um
programa de calouros, quem sabe até com algum correspondente linguístico à Aracy
de Almeida, premiando a melhor ideia com uma viagem à Barcelona, Nova Iorque,
Sidney ou até mesmo, hehe, Rio de Janeiro. Um verdadeiro fenômeno nacional,
exaltando os ânimos, dividindo opiniões, criando apostas, polêmicas,
ponderações. A final certamente pararia o país, aliás, os países em que essa
língua é falada. Seria inclusive o jeito ideal de criação da expressão, já que
na palavra anda o mundo e tudo isso iria a par e passo com o novo clima da
Rússia pós-URSS: consumo massivo, capitalismo oriental, etc. etc.
Mas
ainda não expliquei de quê propriamente tudo isso se trata (o que também vai
bem com o estilo dos anúncios), e me apresso a corrigir-me, enquanto há tempo:
a língua russa se encontra atualmente sem o fundamental vocativo para
estranhos, pessoas de respeito, e outras relações formais ou só não tão
íntimas. À título de exemplo, nós no Brasil temos uma penca dessas: amigo,
chefe, grande, mano, senhor, senhora, moça, gracinha, gostosa, hum, dependendo
do nível da formalidade e da ousadia do falante, claro. O último caso, pondero,
é específico ao caso dos “pedreiros”, de alma ou de profissão. E ainda pode ser
que uma série de regionalismos ainda coloram os diversos estados do Brasil e
mesmo os diversos países em que nossa língua caminha. Mas eu não sei. As formas
que coloquei acima são razoavelmente neutras, claro, dependendo da situação.
Quem se dirigisse ao chefe dizendo “ei grande, e aquela papelada lá, é pra
hoje?” passaria por folgado, da mesma forma que quem perguntasse ao garçom se
“não teria o senhor uma garrafa Brahma” passaria por excêntrico. No melhor dos
sentidos, todavia, um excêntrico elegante.
A
despeito da informalidade no primeiro caso e do absurdo do segundo: ambos são
só a título de introdução, só pra chamar educadamente a atenção do
interlocutor. Depois é que vem o “você”, o universal “você” que cobre desde a
presidente até o flanelinha da esquina, desde o Sílvio Santos até o manobrista
do shopping. Só em Portugal, pelo pouco que sei, o “você” fica para
formalidades e o “tu” para situações mais íntimas. No russo há um relativo às
situações formais, que é o uso do “Vós”, por mais absurdo que a nós, lusófonos,
isso pareça.
Mas
para dirigir-se, para chamar a atenção nesse primeiro momento, bem... aí a
língua ficou desbancada. A única forma mais geral ruiu com a União Soviética:
era o “camarada”, a forma sem erro, que trazia em si alguma beleza de irmandade
ideal pregada pela ideologia. Camaradas eram todos, desde o motorista do
ônibus, até o secretário geral do PCUS, desde o professor universitário até o
sujeito sentado ao meu lado na parada do bonde, a quem me atrevo a dirigir uma
pergunta sobre o itinerário.
-
Camarada, por favor...
Ele
não faz mais que olhar para minha cara com um misto de admiração e ofensa –
deve ter lá seus rancores -, e nem se preocupa em ouvir o resto da pergunta; só
se levanta e vai para o outro lado da parada. Perplexo, esperei outro sujeito
chegar para saber do tal itinerário, dispensei apresentações, quase perdi o
bonde e anotei a experiência no caderno. Não foi sem surpresa que depois, em
outras ocasiões, vi pessoas usando o termo normalmente, em especial em pequenas
frases penduradas nos restaurantes, pedindo para que se levasse a louça ao
balcão, não se bebesse de terça-feira, e outras coisas do gênero. Também alguns
empregavam o termo em conversas, mas, reparei, eram pessoas já bem mais velhas.
Gosto
da palavra “camarada”, em russo, továrisch. É forte, bonita e enfática. Mas ao mesmo tempo é datada.
Agora uso-a somente com amigos, russos ou não, e mesmo assim o efeito é muitas
vezes cômico, alguns me perguntam onde foi que aprendi a falar assim, como num
comício do partido. Há também outras variantes, que alguns desesperados
tentaram resgatar, ainda mais antigas, dos tempos do tzar, que os bolcheviques
fizeram questão de abolir e que, hoje em dia, podem soar ainda mais cômicas.
Merece destaque a palavra “cavalheiro”, gospodín, encontrada direto na literatura do século
XIX. E bem por isso dizia um jargão soviético, eternizado por Bulgákov, que “os
cavalheiros estão todos em Paris”. Na URSS havia só camaradas. Me disseram que
há quem voltou a usar o termo, agora que a liberdade, a igualdade e a
fraternidade da moeda imperam novamente no país, apesar da evidente velharia da
expressão. Quer dizer, evidente agora, porque no primeiro dia, arrastando a
minha mala em torno da universidade sob a nevasca de -30º, no auge do meu desespero
me dirigi, atrás de informações, ao primeiro sujeito que vi, com o auxílio
deste arquipomposo termo, contando com o resgate massivo ao baú do tzar.
Felizmente dessa primeira vez, ao contrário da que narrei anteriormente, não
houve nenhuma ofensa ou repulsa, talvez por pena da minha situação, mesmo
revelando-se, através da nevasca, que não era cavalheiro coisíssima nenhuma, mas
sim uma senhorinha muito bem agasalhada.
E santa, porque não levou a mal a dupla ofensa sobre o sexo e a idade.
Também
tem “senhor” e “senhora”, é verdade, palavras até que parecidas com o
português, súdar e sudár’nha, mas carregam aquele gostinho rançoso de
sistema feudal, contexto em que eram bem utilizados. E há quem goste, cabe
dizer, muitos por aí por lambuza, princípio ou propaganda escrevem tabuletas e
anúncios com requintes de grafia prerrevolucionária... já que o comunismo fez
por bem reformar (e bastante) até a gramática e a ortografia, claro. Mas mesmo
assim esses termos soam mais engraçados do que “camarada”, e não são lá muito
difundidos hoje em dia. Até os bolcheviques dispensaram jargões a seu respeito.
Não há nesse caso nenhum relativo ao nosso
“senhor” para pessoas mais velhas. São chamados idosos, mas não se deve em
lugar nenhum chegar e dizer “ei, idoso”, me parece, nem no Brasil, nem aqui, e
quiçá nem na China, não sei ao certo. Já eles, os idosos, aqui podem vir para
cima da gente com um tal de “pessoa jovem”, que particularmente não gosto, ou
“moça”, que como não sou mulher deixo o juízo para as outras.
Essas
talvez sejam expressões mais gerais, de fato, por relacionarem-se com aspectos
mais genericamente humanos, como sexo e idade. Mas o fim do socialismo, assim
como fizera antes o seu próprio advento, pôs os termos de fato mais usuais em
cheque, o que dá dor de cabeça a todos aqueles que ainda pensam. É sinal de
crise da sociedade, sem a menor dúvida, quando você já não sabe como considera
o cidadão próximo de você. Compatriota? Só no estrangeiro, diante do outro ou
do inimigo. Cidadão? Na província, talvez. Na cidade grande todos se odeiam.
Agora pensando bem talvez mesmo em português tal expressão nos falte, apesar de
ser bem difundido o termo “senhor” para situações formais, e muitos outros,
dependendo do caso. Se voltássemos à proposta do concurso, talvez não só no
russo, mas em todas as línguas, eu teria uma sugestão: consumidor. Consumidor
Pedro Augusto Pinto, consumidor Fulano, consumidor Siclano, por exemplo. Por
quê não? É onde nossos direitos nascem e morrem, é o que nos faz ser gente e
indivíduo na sociedade moderna, pílulas, consumir. Sem consumo, ou com pouco,
somos reduzidos a raia miuda, mendigos, serviçais, no trato dos quais
formalidades se dispensam e muito se permite, às vezes ao extremo da folga e do
desrespeito. Pois então deixemos para lá os eufemismos e oficializemos na
linguagem a completa miséria da vida real! Em certo sentido a poesia agradece.
Consumidor!! Bem adequado. Eu ainda prefiro toda a utopia da palavra "továrisch". Beijo
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