“Estamos em
reforma para melhor atendê-los”. Difícil topar com uma placa dessas no lugar aonde
íamos, sem qualquer suspeita da inconformidade do mundo com os nossos planos.
Se se trata de uma urgência, é o caso de praguejar contra os céus ou chutar um
cachorro. Mas não era, felizmente, sem que por isso eu deixasse de ficar um tanto
aflito, e até desnorteado com a cortina de aço baixada em pleno horário
comercial, sem maiores explicações além da tal da placa. Que aliás nem placa
era, mas uma simples folha branca, presa mal e porcamente numa fita crepe já
gasta, anunciando, numa impressão desbotada, que “Estamos em reforma para
melhor atendê-lo”.
Não fosse a cal
polvilhada sobre o chão, ou dois pedreiros encurvados sobre as suas marmitas, e
a frase pretensamente simpática poderia soar até mesmo cínica. Estarem em
reforma não só não me atendia melhor, como estragava o meu humor e complicava o
meu dia: agora ia ter de buscar outra papelaria que trabalhasse com aquele tipo
de carga de caneta, coisa difícil. E de fora, pelo que eu lembrava, não tinha
nada de errado com a Papelaria Bragança: uma papelaria como qualquer outra.
Talvez uma rachadura na parede, o soalho um pouco gasto... nada que estragasse
a simples venda de material de escritório. Mas existem invenções de moda, fazer
o quê. O jeito era sair Teodoro Sampaio afora atrás de outra papelaria,
contrariando, dolorosamente, o costume rígido e prazeroso de resolver aquele
problema de uma determinada maneira, única, imutável, dispensando-se da
experiência do tempo, como se cada impasse não tivesse mais do que uma única
solução na sua existência, predeterminada, precisa, como se o atravessar a vida
se tratasse simplesmente de ir colhendo as respostas que aparecessem,
conservando-as no frasco dos costumes e fazendo do mesmo jeito até que chegasse
o dia de não fazer mais nada.
Mas tal como a
vida é um emaranhado ilógico de soluções e erros desquitados, o emaranhado
comercial da Teodoro às 3 da tarde não tinha uma única papelaria que vendesse a
carga para caneta que eu precisava. Havia outras, para outras canetas à venda,
de diversas formas, mais anatômicas, charmosas, atrativas, de outras cores e
cargas, muito melhores que a minha. E, no desespero da saída mais prática, cheguei
a cogitar a troca – mas bastou um olhar para o bolso da camisa azul, onde
pendia o desbotado e gasto cilindro de tinta, para que me sentisse um canalha
por tal pensamento, e saísse da loja correndo. Absurdo, absurdo completo
trocá-la: era amiga fiel e caríssima, por razões alheias ao preço, e vinha comigo
nos últimos anos pelas linhas tortas e poeticamente pobres que tracei São Paulo
afora, desde que a ganhei de meu tio, num aniversário triste e sem balões. Não,
não a trocaria nunca: haveria de respirar fundo, andar com uma Bic
temporariamente e, até que a reforma da papelaria Bragança terminasse, para assim
“melhor me atender”, também eu estaria em reforma, fechado e indisponível, sem
explicações além de um papel lacônico. Ainda que, talvez, nunca chegasse a
atender ninguém.
É que, nos
últimos meses, acabaram-se os trabalhos, que amainavam o sufoco da volta ao
Brasil; os serviços temporários desapareceram; e certas necessidades, tão
súbitas quanto ridículas, me fizeram gastar mais do que se deveria em tais
situações, em que a instabilidade é iminente e as perspectivas não se deixam
vislumbrar. As saídas com que sempre contei para as horas difíceis, como portos
distantes ao alcance da mão, na hora do aperto mostraram sua face de farsas
patéticas, de vidas que nunca terei, por incapacidade ou nojo. E, não havendo
nada de novo sob o sol, o costume, idiota, insistia em bater nas mesmas velhas
teclas, nas mesmas portas fechadas nas ruas aparentemente vivas. E batia com
raiva, com obstinação doentia, até que o erro esgotasse finalmente todas as
suas possibilidades e eu pudesse retornar, animal derrotado, para a casa que já
não era minha.
Nisso veio o ano-novo,
quando a TV e a champanhe profetizam a renovação dos tempos, a purificação dos
crimes, a inauguração do que é de todos; a cornucópia pelo calendário, enfim.
Mas depois da queima de fogos, nas minhas tardes só via os mesmos gestos e
propósitos, maquinalmente disseminados, repetidos nos velhos lugares com, no
máximo, uma luminosidade nova, a de veraneio paulista. Como sempre, no
desespero, me apeguei em vão aos deuses do cinema: o amor, que é coisa pífia; e
a viagem, que é redundante.
Voltei para a
solidão de São Paulo na obstinação da mudança, e a primeira coisa que notei,
arrumando as coisas para mais outro infindável ano letivo, foi que a carga da
caneta de estimação, a única com que escrevo, por neurose pessoal, tinha
acabado. E já devia fazer tempo – sinal do abandono em que deixei a literatura
nos tempos de crise, talvez por sua patente inutilidade, excessivo desgaste psicológico,
esterilidade absoluta. Mas numa vida em que estas formas céticas de preguiça já
imperavam, soberanas, há pelo menos um triênio, com um Pão e Circo feito de
subversão bem comportada, de boemia confortável, de indignação resmungada, de
revolta de cartilha, numa conjuntura tal ao menos a honestidade de se
reconhecer inútil, cansado e impotente já assume a sua grandeza ao se voltar
contra si mesma, gato acuado, praguejando contra o universo que a tolhe com censuras
de mil tipos, inimigas e principalmente amigas, abertas e claramente veladas, e
sempre num cinismo completo.
Determinado, saí
para comprar a tal da carga, e dei com a papelaria fechada, com o chão coberto
de cal e os dois pedreiros almoçando, como descrito. E depois a busca por novas
lojas, as novas canetas, nada que servisse às minhas velhas, mas puras
determinações. Gostaria de acabar esta crônica encontrando a carga em outra
papelaria, depois, com alguma paciência, ou com a velha reabrindo, anunciando
que pretendo ir lá amanhã. Mas as lojas novas são todas absurdas e a reforma
segue sua marcha, sem previsão de término, e dificilmente acharei o que busco
em algum lugar que desconheço. O que me resta é esperar, num trabalho surdo, e
anunciar, como a papelaria, a minha própria e indispensável reforma, feita a
papel e caneta Bic, para talvez, quem sabe, melhor atendê-los, irmãos no exílio
da vida, ainda que não com material de escritório, mas com presença digna. Não
é difícil reparar num imóvel que apodrece: o teto abre, as paredes mofam, o chão
se rompe... e por fim desaba. Mas vivemos entre mortos indiferentemente, sem
perceber nem mesmo o verme, gordo e feliz, que rasteja em seus sorrisos de
bom-dia.
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