Imagino cá
com meus botões quantos escritores, ou pretensos, não deixaram de vez a pena e
a tinta por não terem um lugar de trabalho, um cantinho íntimo em que pudessem passear
com as ideias por uma folha em branco até enchê-la de letras, sem esbarrarem nos
móveis ou serem engolidos por problemas prosaicos. Não que alguém ainda escreva
com pena ou até com tinta: foi força de expressão. Se bem que descreva um
problema real, ao menos para quem segue o caminho torto das linhas: às vezes,
escrever com pena de ganso numa isolada torre de feudo seria melhor do que se
meter no emaranhado de fios de uma máquina, num qualquer apartamento de nosso
século.
É que o computador e o Microsoft Word, apesar do inegável brilhantismo das inovações técnicas, têm em contrapartida seus pepinos particulares, para além dos pepinos clássicos; somando-se os dois, tem-se então a monstruosa fila dos engodos que perfazem o ofício de escritor, já por si bastante ingrato. Pois vejam: além do barulho pedregoso da Cardeal Arcoverde, além do cheiro estonteante da janta do vizinho, e além da vontade louca de sair sem mais nem menos e passar a tarde inteira no boteco, de quebra ainda tenho de aturar a impertinência das criações de Bill Gates, que insistem em questionar meu Firewall e mesmo a originalidade de meu produto – o qual, dizem, sendo pirata, comprometerá irreversivelmente a qualidade desta ou de qualquer crônica que através dele se produza.
É que o computador e o Microsoft Word, apesar do inegável brilhantismo das inovações técnicas, têm em contrapartida seus pepinos particulares, para além dos pepinos clássicos; somando-se os dois, tem-se então a monstruosa fila dos engodos que perfazem o ofício de escritor, já por si bastante ingrato. Pois vejam: além do barulho pedregoso da Cardeal Arcoverde, além do cheiro estonteante da janta do vizinho, e além da vontade louca de sair sem mais nem menos e passar a tarde inteira no boteco, de quebra ainda tenho de aturar a impertinência das criações de Bill Gates, que insistem em questionar meu Firewall e mesmo a originalidade de meu produto – o qual, dizem, sendo pirata, comprometerá irreversivelmente a qualidade desta ou de qualquer crônica que através dele se produza.
E pior: a tentação do Facebook,
piscando no canto inferior da tela. Isso é que é de matar. Bem sei que deveria,
por comprometimento profissional, fechar tudo e me concentrar no que de fato
importa. Mas como bom escritor não posso deixar de acusar uma conspiração: a
mesa está bamba, já estou com fome e até a geringonça com que escrevo parece
querer me atrapalhar – no fundo não passa de uma tela de tentações. E pra quê
escrever quando se tem o Facebook? Ninguém escapa à generalizada ansiedade deste
século: vivemos na expectativa, como se uma única mensagem pudesse alterar a
rotação da terra em nossa quarta-feira – coisa que ainda pago para ver,
acessando a minha página três vezes ao dia...
Aflito com a distração que o
computador involuntariamente proporciona, cheguei num momento de crise até a
pensar numa máquina de escrever - ideia claramente estúpida, mas que no
desespero de inúmeras tardes improdutivas ganhou proporções de genialidade
inaudita. “E por que não?”, pensava, “não precisa de energia, imprime enquanto
escreve, não deve ser caro e é impossível se desconcentrar com babaquices”. Sem
contar toda aquela áurea de escritor do século passado, fumando um cigarro num
escritório em Copacabana – romantismo besta, mas, em se tratando de um jovem
igualmente besta, bastante influente. Fui atrás de algumas lojas, pesquisei
detalhes e por fim, obviamente, desisti, ao descobrir sobre fitas, tipos e
outros artefatos arqueológicos de difícil aquisição. De fora, mesmo que dominasse
esses artigos, fugindo assim das tentações da internet, restariam os problemas
antigos, de qualquer maneira, já que não fumo, não vivo nos anos 50 e tampouco
em Copacabana. No mundo dos vivos o vizinho continuaria cozinhando, a Cardeal
continuaria barulhenta e a minha avó seguiria me interrompendo para falar
alguma coisa sobre meias, demolindo inocentemente a frágil arquitetura de
ideias que tento organizar numa qualquer narrativa. O que eu precisava mesmo era
de alguma coisa móvel, portátil, simples e objetiva, sem firulas ou apetrechos,
mas diretamente ligada ao registro do pensamento – a imediata ligação entre
ideia e palavra escrita.
Foi depois de mais um dia estéril
– corroborado pela ruidosa presença de um eletricista pançudo, na sala em que
costumava trabalhar – que finalmente tive uma iluminação: saí pela Teodoro e
fui direto à papelaria Bragança. Papel e caneta – pronto! Já devia ter sacado
faz tempo. De que mais eu precisava? Senti que um horizonte novo, a um só tempo
mais genuíno e ancestral, surgia na minha hipotética carreira, e não pelas
coisas em si – não era nada que não tivesse em casa –, mas pelo simbolismo da
ação, oficializado com a compra de uma Bic cristal e de um caderno Tamoio. Sem
mais, sabendo da impossibilidade de escrever em casa, pela presença espaçosa do
eletricista, e pela iminência da hora da novela de minha avó, fui para a
Benedito Calixto na fixação de escrever um romance inteiro, ali, naquela única
tarde – tamanha era a fé que depositava naquela caneta amarelo-azulada, e
naquele caderno com o indiozinho sorridente.
Felizmente havia um banco vazio –
nos outros, conversavam uns taxistas, um mendigo cochilava e dois namorados se
engalfinhavam. Mas mal prestei atenção: me acomodei, rasguei o plástico do
caderno com a ponta da caneta e abri numa página aleatória. Possuído e
desorientado, rabisquei numa caligrafia apressada:
“Era uma tarde calma...”
E parei – a mão não queria
seguir. Olhei em torno absurdado: a mesma cena de praça. Depois me voltei
raivoso contra a linha: como assim, uma tarde calma? Calma para quem, e onde? Não
fazia o menor o sentido! Um romance? Era com certeza o começo de romance mais
estúpido, pobre e desinteressante que alguém jamais tinha arriscado.
Risquei com raiva aquelas quatro
palavras, e me pus a tentar meditar em alguma coisa melhor – tarefa nada
simples. Se não era calma, o que seria a tarde? Bem... “Era uma tarde tranquila...”,
ah, ajuda muito. Meu Deus... melhor talvez desistir dessa ideia, deixar que
evapore completamente da minha cabeça e daí começar do zero, sem compromisso
com o cadáver do irreparável. Aflito, voltei a olhar a praça: os namorados tinham
sumido; o mendigo terminava seu cochilo, coçando as costas; e os taxistas
estavam tão compenetrados na conversa que nem viram a moça que se aproximou do
ponto, na intenção de ir a algum lugar, e que ficou lá esperando. A conversa
parecia realmente ser séria, densa, e até arriscada, talvez: um deles, com uma
barbicha rala e óculos quadrados, olhava para os cantos o tempo todo, e estava
claramente nervoso. Já o outro ouvia impassível, olhos no chão, fixos e
melancólicos, até que alguma coisa fez com que os dois se perturbassem de
maneira espalhafatosa, se ajeitassem no banco e começassem a buscar,
inutilmente, disfarçar a conversa. É que chegava um terceiro homem...
E era essa a história, exatamente
essa! A conversa sobre o apartamento, a corrida não paga – o atendente de verde–,
e daí então finalmente... Segurei a caneta numa dificuldade trêmula, como se segurasse
brasa, e não tinta. O desespero pelo achado me excitava, e pressionava a caneta
excessivamente contra o papel – a ponta não fluía, se arrastando com o peso de
mundos. Já não distinguia direito as linhas – o sol tinha se posto, e nenhuma
luz fora acesa. Mas apesar de tudo, eu avançava, lentamente, mas avançava,
tentando inutilmente alcançar a cadeia lógica de ideias que escapava num fluxo
absurdo, conforme os dedos penavam ainda para pingar os ‘i’s da descrição da
barbicha do primeiro taxista. E como que de propósito a caneta, novinha!,
insistia em falhar maldosamente, nas curvas dos ‘l’s, nas pontuações... e eu
teimando. Já não era possível parar, ainda que não entendesse a minha própria
letra, a história continuaria; mesmo que a mão já doesse, por causa da força
nervosa que empregava na caligrafia, mesmo assim haveria de...
- Ô irmão, com licença! Tem como
cê me dá uma...
- Puta que o pariu! – explodi,
chamando a atenção do taxista e de uns três passantes.
O indigente barbudo me olhou
assustado, sem entender a desmesura da reação.
-Opa irmão, foi mal aí cara! Na
humildade, eu só queria...
- Eu sei, eu sei... – murmurei
apressado e confuso, procurando a carteira como que num gesto de desculpas – eu
é que... toma, ó, e desculpa mesmo, viu. – e me virei, procurando algum lugar
pra enterrar a cabeça.
Sem entender se eu era louco ou
idiota, o sujeito vacilou o olhar entre eu e a nota de dez, agradeceu sem muita
convicção e tratou de se despachar antes que eu pudesse mudar de ideia, ou ao
menos olhar para a nota que tinha dado – coisa que, no nervosismo, não me dei
ao trabalho de fazer, e que aliás pouco importava: o taxista tinha sumido, e as
minhas anotações se resumiam a duas linhas e meia em que descrevia o banco e a
barbicha. O lapso, obviamente, fora momentâneo, e a ideia fugiu com o
indigente, para passar a dormir na rua, sem casa e sem dono.
Sem mais, faminto, frustrado e
nervoso, larguei aquela praça dos diabos e tomei o caminho de casa, deixando a
caneta e tudo. A gente bem que tenta, mas, ora, a vida! Quando não é o Word, é
a carga da caneta; se não é minha avó, é o indigente; se não é a fome, é o
Facebook. Quando, eu pergunto, quando é que essa profissão teve direito a um
lugar no mundo, ao menos com a paz de que carece para organizar as ideias?
Poderia continuar me servindo de idealismos, dizendo que há sessenta ou setenta
anos atrás o mundo era outro, e que lá sim, o escritor e a sua máquina de
escrever eram respeitados e admirados, ainda que através da forma mais simples
de reconhecimento, que é o não atrapalhar. Mas já não posso concordar. Há
setenta anos havia a guerra, imaginem! – e se escrevia. Há cinquenta faltava
água, carne, e gás – e também se escrevia. Há quarenta havia censura... e por aí
vai. Por que eu, capeta, não haveria de escrever por causa de uma pergunta
impertinente, de uma rede social ou do cheiro de comida? Seria no mínimo uma
desculpa esfarrapada, assim como a técnica. Por acaso não devo assumir as
estruturas de meu tempo? Feliz ou infelizmente, é impossível voltar aos feudos
e aos manuscritos em pena de ganso.
Sem mais, me sento às onze da
noite de uma quinta-feira no quarto dos fundos de meu apartamento. Aqui é
garantido – ninguém me atrapalhará, pelo menos até as duas, quando os
funcionários da padaria ao lado chegarão para o trabalho, e hão de conversar em
voz bem alta sobre as anedotas de suas vidas. Coisa que, bem sei, longe de me
atrapalhar, me alimenta, mais do que qualquer janta preparada pelo vizinho. E até nisso eu me preparei: na escrivaninha, que tem pouco espaço, mas que me
acompanha desde sempre, descansam um pires com bolachas e uma garrafa d’água - além do papel higiênico para rinites, o carregador para suprir a bateria e
papel e caneta, para ideias avulsas, que não mereçam a tela. O quarto é módico
e inacabado, a cadeira não me serve, a noite avança o meu cansaço, mas mesmo
assim eu, abstração verbal, insisto, existindo através dos séculos que tentam
me apagar das pedras, me roer dos livros e me deletar dos sites.
Mas falando em sites, alguém ficou
de me mandar uma mensagem...
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