Curioso fenômeno, este da cidade de
São Paulo entre dezembro e janeiro! Talvez seja a única época de fato agradável
nessa cidade, e seria bom se o seu cartaz Brasil afora fosse feito nessa base.
É a única época em que uma avenida como a Rebouças poderá ser encontrada
completamente vazia, com um velhinho atravessando lenta e calmamente a
quilômetros da faixa, e uns pombos ciscando em pleno corredor de ônibus –
coisas que, em qualquer outra época ou dia, seriam manchete sanguinolenta.
Estamos em uma determinada praça, às
duas horas da tarde, na dita época do ano. Onde antes tagarelavam os taxistas,
feito um bando de maritacas, há agora somente um bêbado mal-amanhado, no sétimo
sono, e por cima, na copa das árvores, um bando de maritacas de fato, alegres e
indiferentes às festividades de Natal e Ano Novo. Mais ao lado, nos bancos de
cimento – aqueles bancos em que o homem de escritório e o flanelinha, nos
quinze minutos que sobram do almoço, fumam o seu cigarro olhando para o nada –,
naqueles bancos não tem absolutamente nada, ainda que o observador atento sempre
ache um chiclete mascado, uma lata de cerveja ou até mesmo uma carteira cheia,
se tiver sorte..
Mas
na tal praça nem isso tem. É terça-feira, um dos dias normais da alucinação
coletiva do trabalho e do transporte, mas dada a época do ano até mesmo a
circulação do ar – fresca, lenta e silenciosa – parece querer nos convencer
tratar-se de um domingo, e de algum domingo pós-guerra, tamanha a calmaria
pasmacenta que envolve as ruas e as esquinas. É num momento como esse que se
poderá identificar a verdadeira natureza da praça, fosse ela alguma espécie de
formação geológica sem finalidade urbana: árvores frondosas balouçam seus
galhos preguiçosos ao sabor dos ventos, abrigando periquitos, papagaios fugitivos,
miríades de pombas e pardais, obviamente, e alguns sacos de lixo pendurados por
distração. Tudo sobre o pano azul do céu de veraneio. O que não há de carros,
de negócios e de azáfama parece se compensar nestes galhos cheios de pássaros –
já que, para eles, é um dia normal, e até mais normal do que nunca, pois em se
tratando de pássaros só poderiam ser estranhos o barulho do trânsito e o cheiro
de bife com fumaça.
E
também a paisagem humana, nessa praça, se compõe em lenta harmonia: é a época
em que as crianças finalmente podem voltar às ruas, que lhes pertenceram algum
dia, e nada melhor para isso do que um campinho gramado, um parquinho, às vezes
uma colina ou um concretado, onde logo se juntam com cacarecos e mirabolações
para aprontar as suas, graciosamente. No caso, uns cinco pimpolhos jogam bola
mais um ou outro pai, também transformado em criança, pelas circunstâncias de
jogo e de fim de ano. E todo o barulho que fazem com seus gritos agudos, que tantas
vezes chega ao infernal, se integra naturalmente a esta harmonia universal de
férias paulistanas, que o badalar dos sinos na igreja em frente à praça
completa, numa bênção inesperada.
Bênção que também abarca o metafísico universo canino: na sua ingenuidade, os cães tornam-se reis
daquele espaço vazio, tão cheio de cheiros, de formas, gravetos, lixeiras
saborosas, e também outros cães, com novos focinhos e cus e, quem sabe, novas amizades.
Dois desses já se aproximam: um é de raça, um Retriver, bobo e peludão. Já a
outra é uma vira-lata, sem que com isso perca um pingo sequer em dignidade, que
expressa num olhar altivo, e num pelo curto vistoso bem escovado. Sua dignidade
é, aliás, tão grande, que beira até o excessivo, conforme esnoba o pobre do
Golden que já se dispõe a enormes intimidades.
-
Desiste, amigo, ela é castrada. – diz, num sorriso, a loira dona da vira-lata.
Mas
o cachorro, que de português entende pouco, segue insistindo, e o seu dono, mesmo
versado na língua de Camões, acaba prestando bastante atenção no sorriso da
moça, tentando os artifícios humanos que correspondem mais ou menos diretamente
às cheiradas e impulsos do cachorro. E obteria muito mais sucesso que o seu
amigo canino, não fosse este beirar o desrespeitoso e receber,
consequentemente, mordidas e latidos de feminina e justa indignação da
sobredita vira-lata, estilhaçando a um só tempo a cantada do sujeito e todo
aquele quadro pacífico e dominical descrito acima: voam as pombas e as
maritacas, as crianças param seu jogo, curiosas com o rebuliço. Até mesmo o
vento para de soprar.
E
o bêbado – o bêbado e indigente, que sonhava sabe-se lá com o quê no banco do
taxista, finalmente acorda, com aquele barulho. Sua primeira e impulsiva reação
é xingar aquilo tudo, ainda que sem muita dicção. A começar pelo salafrário que
tinha tentado roubar a sua garrafa de cachaça. Mas ao perceber que aquele já
não estava mais lá, e talvez nunca tivesse estado, se acalma e repara no
barulho dos cachorros.
-
Ê vai latir na casa do...
Mas
não conclui a frase – tem coisa muito mais importante. Onde é que está a...
-Ufa!
Graças a...
Estava
lá, encostada, onde ele tinha escondido. Mais relaxado, esquece dos cachorros, dá
um gole e se apronta para começar o dia. E que dia mesmo? Lá importa... foi mais
cambaleando pro caminho de sempre, mas, na esquina da praça, esbarra com a desagradável
notícia de uma cortina de aço, cobrindo dramaticamente a porta da padoca.
-
Como assim?! Mas... como assim!?
Não
acredita. Bate umas três, quatro vezes, até chuta. “Ô seu Jair!...” grita, bem
articulado. Mas nada do seu Jair – o cearense que costuma dar pão com manteiga
e pingado. Tudo fechado, e em
silêncio. Mas não cai a ficha logo de cara. Ainda fica
esperando uma meia hora, indeciso, meio pasmando, até que finalmente se dá
conta e bate, genial, com a mão na testa:
-
Eita que deve ser domingo, cacete.
E,
maldizendo o sétimo dia da criação, vai-se embora, sentido centro, atrás da
padaria do palmeirense que funciona aos feriados.
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