"O cronista no telhado", coluna de Pedro Pinto
É com inexprimível alegria que anuncio, através desta crônica, o mais fantástico natal que esta cidade já viu e provavelmente verá. Chega de solarão no céu azul, em discrepância com o vermelho dos papais-noéis, chega de suadouro e de praia, frustrando as pistas de patinação e a neve sintética: tudo indica que neste fim de ano nosso natal será frio, senão gelado. Pelo menos em São Paulo – e é mais um motivo de orgulho para nos gabarmos para os outros estados, que, como nós, sempre sofreram da esquizofrenia entre os termômetros dos trópicos e o espírito natalino.
Pode
ser que seja arriscado cantar esta vitória agora: o tempo anda tão louco que
tudo ainda é possível. Mas minha empolgação não tem limites: finalmente pude
vestir pijama e pantufas em pleno dezembro, e o quadro se completa com um LP de
George Gershwin – não à toa, a trilha sonora daquele filme do Woody Allen, “Manhattan”.
É que sempre fomos a Manhattan subequatorial. Mas agora o clima ajuda. Neste
natal, aqueles que têm o luxo de uma lareira poderão se esbaldar, até com
aquelas meias vermelhas e felpudas, que vemos nos filmes, cheias de doces,
enquanto crianças rosadas aguardam ansiosas o voo internacional do bom
velhinho. Mas os que não têm, por escolha ou por fortuna, também têm
privilégios:
A
av. Paulista.
Ah,
a Paulista! Meu coração se enche de caudalosa poesia ante a mais simples menção
deste nome! Mas é indescritível! Mesmo infinitas resmas de papel branco e puro,
ou mármore elevado, ou páginas num blogue da Folha, nada disto bastaria, nem
sequer chegaria aos pés do verdadeiro ideal, se por acaso ou ousadia este que vos
escreve se propusesse à homérica, à sacrossanta tarefa de descrever em todas as
minúcias, em todos os ardis, em todos os mais vívidos e intensos detalhes esta avenida
formosa, esta estrela d’alva da capital paulistana, ou melhor!, da nação
brasileira! ainda não, do continente americano! Sem sequer mencionar a sua
decoração de natal: as luzes borbulhantes do Conjunto Nacional; a teia
iluminada nas altas árvores do Trianon; o visgo na pista do meio, do Paraíso à
Consolação, com um simpático “Feliz natal” escrito em 58 idiomas diferentes; e,
claro, aquele majestoso presépio pós-moderno, cheio de ursos, bonecos de neve,
reis magos e outras coisas já tão tropicais quanto a anta e o tamanduá. A
Paulista é, sem nenhuma dúvida, o passeio certo para namorados elegantes, para
noivos apaixonados, para solteiros atrevidos, solteiras vicejantes, famílias
dignas ou ainda mesmo, e falo por mim, para solitários e despretensiosos sonhadores
natalinos. Em suas formas e luzes, é plena, e tudo abarca.
E se sempre foi este monumento de urbanidade, esse
charme excepcional, então o que não será este ano, com a temperatura na faixa
dos 18 graus? Finalmente, um natal no inverno! Poderemos sair com nossos
casacos mais finos, com os chapéus mais chamativos, com os sapatos mais
rebuscados. E o melhor de tudo é que a Paulista dispensa pretextos: pode-se ir lá
sem absolutamente qualquer razão, e não me refiro somente ao Masp ou à esquina
da Al. Santos com a rua da Consolação. Pessoalmente, por rígido costume, vou lá
todo fim de ano com bastante frequência, só para bater pernas, flanar, como se
diz. Às vezes, lógico, acabo tomando um mate quente, indo ao cinema, empinando
pipa, pescando paqueras, comprando um livro, comprando um lanche, comprando...
Bem,
é natural: na Paulista, comprar alguma coisa é tão simples e espontâneo quanto
assobiar o “Hoje, é um novo dia, de um novo tempo...”. E é espantoso ver como,
nessa época do ano, a avenida vai lentamente se enchendo de turistas de todos
os cantos da cidade, do Brasil e do mundo, no mesmo ritmo em que se enche de parafernálias
verde-vermelhas. Não é difícil distinguir suas origens: os gringos, lógico,
estão sempre gringando, para cima e para baixo, como sempre. Os interioranos,
normalmente em família, tiram fotos de tudo, do metrô ao prédio da Gazeta, da
rua Augusta à praça Oswaldo Cruz, espantados, e com razão, pela grandeza
ostensiva da artéria comercial-natalina. Já os da capital, como eu, passeiam
esnobes e indiferentes, olhando com desdém para os caipiras que nunca viram um
metrô e que parecem, mais do que nós, envolvidos por alguma aura mágica de
natal. Mas no fundo nós também, naquelas calçadas largas, entre edifícios
luminosos; entre casais de todos os tipos, numa licenciosidade que não se dão
em outras ruas; entre pessoas normalmente bonitas, livrarias elegantes, cinemas
cultos, shoppings diversificados, estações de metrô, bares, parques, artistas,
enfim: nós também, em meio a tudo isso, estamos realizando alguma espécie de
sonho de filme da Sessão da Tarde, e comungamos com todos os seres que passeiam
naquelas calçadas.
Comungamos.
E comungamos pelo commércio, que, mais do que qualquer Jesus Cristo, nos une e
sociabiliza nesta tão doce época do ano. Todos compram, levam sacolas grandes,
das lojas de roupas, elegantes sacolinhas das livrarias, bolsas ecológicas com
estampas descoladas. E vivemos, por algumas mágicas semanas, uma espécie aceita
de delírio coletivo, que só peca por ainda não ser perfeito. Se dobramos uma
rua errada, por exemplo, corremos o risco de cair em algum puteiro, de
trombarmos com um mendigo fedido, de nos enfiarmos num bar sujo, com música de
má qualidade e gente feia, suada e mal vestida. Nos shoppings, jovens bêbados e
exalando hormônios perturbam a paz numa brutalidade abjeta.
Às vezes nem precisa chegar a tanto: dezembro,
normalmente, com o calor infernal que faz, fica difícil sustentar qualquer
sonho elevado de plena sociabilidade moderna. Quem é que vive um sonho com 30
graus de inferno, numa avenida mal arborizada, concretada e cheia de carros! Acabamos
bebendo cerveja e, quem pode, indo à praia. Mas esse ano, meus caríssimos, tudo
indica que haverá a perfeição: a crise aqui não chega, a economia cresce e a
temperatura é quase fria.
Se
tivermos sorte, neva.
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