Voltei
da seção eleitoral para minha casa vendo estrelas, e não só pelo cansaço de ter
acordado às seis da manhã de domingo para ser mesário. Ainda menos pelo prazer
futebolístico de já saber, numa expectativa certeira, que seria o meu candidato
quem levaria esta eleição, e que chegando em casa ia poder gritar horrores pela
janela.
A
alegria mesmo era subir a Teodoro com o quente conforto de que, finalmente, a
organização das coisas não estava mais na mão das pessoas e grupos que me acostumei
a repudiar. E diga o que se disser, costume fundado na vida. Posso não saber de
dados, mas basta o dia-a-dia numa cidade como São Paulo para desenvolver, ainda
que de orelhada, uma consciência política mais ou menos articulada. E vendo a
tarde cinza, se arrastando lenta como o próprio domingo por sobre uma Teodoro
Sampaio vazia, tinha em meu peito entorpecido um sentimento, de que, das
esquinas, dos lugares que frequento e do afeto que eu sinto por essa cidade, em
que vivo e sempre vivi, não mais me espreitavam shoppings, preços de ônibus,
abandono aos pobres e policiamento moral, coisas que tanto suportaram-se, como
um assalto matinal previsto em lei.
O
que, na real, me espreitava? bem, coisa difícil. A rua, claro, estava bem
vazia, e poucos pareciam se mobilizar de fato com aquilo que o Tribunal
Eleitoral teve a infelicidade de chamar “festa democrática”. De festa, tem
pouca coisa. Mas estamos no país do carnaval, e se releva. O que impressionava
e chamava à terra era ver certa falta generalizada de ânimo: os casais andavam
de braços dados nas mesmas cores e ritmos com que andariam qualquer domingo;
alguns velhos fumavam nas portas comerciais, já fechando; o Nélson fazia a
ronda, a chuva, já ida, escorria ao longo das padarias e do Pão de Açúcar. São
Paulo rangia sem pressa os seus semanais mecanismos de folga.
A
alegria ali era só minha. Mas como se diz isso para uma pessoa? Via a alegria
em tudo, via finalmente alguma chance de renovação, de cuidado, de poesia, até,
imaginem. Poesia de entender esta cidade e suas sutilezas, e não querer agravar
seu lado que tende ao infernal. Me parecia mesmo que as janelas dos prédios, de
poucos andares, vibravam com a minha alma, jogavam confetes, refletiam a humana
sensação de se salvar. E também os poucos carros, até os transeuntes, coitados,
que nada tinham com a minha quase ingênua euforia: levavam a vida de sempre,
como sempre.
Mas
quem disse que isso chegava até mim: meu estado era inabalável. Até que,
olhando para os lados, dei com a vista em um senhor sentado ao chão, na parede
do Pão de Açúcar, meio sujo e alucinado. Sem dramaticidades: roupas rotas, mas
ainda boas; barba encardida, mas de bom corte; sentado, e não largado no chão,
as mãos maquinalmente numa posição de cunha. O desespero mesmo vinha do olhar:
aqueles eram olhos já incapazes de se ver no mundo, além dos espelhos. Não sei
se por alguma droga, cansaço, loucura... e isso no caso nem importava. A sua
simples existência lá, tão distante e funda, já contrastava desilusória com a
imagem que, nas minhas patriotadas ideais, tinha para mim do espírito geral da
nação naquele instante, naquela rua. Mas o velho não fazia nada além de
murmurar, no seu canto, e tenho
certeza de que não eram jingles ou mesmo propostas políticas, embora ele em si
já fosse uma.
Sentado
naquele canto, passasse o ônibus que passasse, sua feição permanecia a mesma,
seu olhar seguia voltado para si, ou para o mundo que se confundia com ele.
Nada de urnas, debates, campanhas, mobilização: possível que nem soubesse das
eleições. Possível que estivesse lá naquele canto, sentado, a mão em cunha, já
há muito tempo, e eu não tivesse reparado por simples negligência. A mesma
negligência que me levava a acreditar, naquele momento, naquela caminhada rumo
à minha casa, que eu me integrava ainda que só por intenções à uma cidade
imaginária, a um povo, a uma história, onde cabiam todos os homens. Até
possível em termos: um me escaparia sempre.
Se
por opção ou contingência, não tinha como descobrir. Quem sabe não queria
aquilo mesmo? E se não quisesse? O querer haveria de ter um porquê, sempre tem.
Mas o ignoro. Para mim, ele foi o urubu que, felizmente, veio pousar nos meus
arroubos de vitória. O que ganhei, no fim das contas, bolas, além de um domingo
trabalhando como mesário? O que é que, na verdade, se projeta por detrás de
todos estes prédios cinzas, preguiçosos no domingo, em todo esse lixo amontoado
pelas portas, no trânsito que acabou se formando, apesar do domingo? Perguntas
difíceis, que transcendem qualquer escritor de ocasião, ou pessoa de
sensibilidade arrebatada.
Sensibilidade que bem gostaria de chamar
àquele homem de irmão, de pai, de
Outro, mas por dever de consciência não se contentou com essas fugas naquele
instante. A vitória, repensei, calmo e mais atento, atravessando os viadutos da
Teodoro, não saiu das urnas. E nem a esperança. São coisas de tempos
indetermináveis... uma luz acena, a luzinha de hoje, mas ainda estamos longe de
chegar ao fim de qualquer marcha, principalmente daquela, a para além dos
domingos burgueses, das ruas sujas e dos homens sós por vontade ou por fome.
Oi Pedro, tinha que vir aqui comentar e te contar um pouco do meu estranho domingo, pois acabei sem querer caindo no meio de uma festividade, um pequeno miolo na av.paulista, em frente ao gazeta, onde tinha um monte de gente, bandeiras vermelhas, zunzunzun de conversar sem fim, e eu olhando com uma expressão, que minha amiga até achou que eu não estava gostando (na verdade eu não sabia muito o que estava sentindo). passava de tudo por lá, até um grupo de guardas vestidos de pretos, andando todos juntos, achamos que vinha haddad no meio deles, claro que não, haddad surgiu depois de um caminhão muito grande, num outro caminhão, e bom. foi uma energia daquele pessoal, uma energia, que eu sorria por sorrir, sem saber muito por que sorria de tão fora do normal, é que eu nunca vi uma manifestação por conta da eleição, chegou a passar um carro muito estranho, com um senhor de barba branca e uma música alucinante. aquele miolo da av. transbordava em música, gritos, sorrisos e sei lá mais o quê, uma energia boa passava por tudo quanto é lado, tinha até gente dançando no meio da av. paulista . . .
ResponderExcluirGostei muito da sua crônica e compartilho de um sentimento semelhante que senti em meio a av.paulista, sem saber porque sorria, receosa do que poderia vir no próximo ano.
Oi Dora! Mais uma vez obrigado por ler meus textos. Também fui chamado para ir nesse comício lá na Paulista, mas, além do cansaço (porque fui mesário), tive um certo receio de participar dessa festa e não entrar na brisa. Lembrei do comício da primeira vitória do Lula, em que fui, ainda pequeno, com os meus pais, e não pude deixar de associar à decepção que eles hoje têm com o PT. Mas eu tenho muitas esperanças nessa nova gestão, espero que se realizem.
ExcluirRecomendo a leitura do "Primeiro de maio" do Mário de Andrade, sobre a temática da participação política.
Em tempo:
ResponderExcluirHoje foi achada em algum canto da Zona Leste a urna eletrônica que havia sido roubada ontem, durante as eleições. E foi achada por um morador de rua, imaginem. Gostaria de saber se ele foi votar.
Oi Pedro, obrigada pela recomendação, vou procurar por aqui, talvez na biblioteca do meu tio.
ResponderExcluirAproveito para fazer uma troca, deixo aqui o nome de um livro do Italo Calvino: "Um general na biblioteca". É um dos meus preferidos.