“E o bonde que parece
uma carroça:
Coisa nossa, muito nossa"
Noel Rosa
Coisa nossa, muito nossa"
Noel Rosa
Entrei no ônibus e, por sorte ou
malandragem, consegui me sentar: era um daqueles dias em que a gente sabe que
merece sentar, e de um tal modo que, quando conseguimos, não ficamos com aquele
típico remorso pelos que vão de pé e nos olham, invejosos. Mesmo sabendo que o ônibus
está cheinho e que aquela moça ali, ares de cansada e cheia de sacolas, talvez
sinta tanto quanto você que merece se sentar.
O
dia de fato tinha sido difícil: estava exausto e irritadiço. Já nem ligava
tanto para o cheiro de suor, ou para as cotoveladas do sujeito ao meu lado, mas
estava de um jeito que qualquer barulho me incomodava: conversa, porta se
abrindo, celular. Até certo nível ainda relevava. Mas o destino conspira contra
os que se irritam facilmente.
Aconteceu que aquela moça, de cujo lugar me
apossei, sem mais opções, foi se escorar onde pôde, mais ou menos perto do
cobrador que cochilava, distraído. E foi mal ela chegar lá que ele, sabe o
diabo o que lhe deu!, de pronto acordou, viu a cabrocha e abestalhou-se, tentando puxar assunto
ou, ao menos, travar contato. Mas ela não estava nem aí pra nada. O doido ainda
tentou milhares de artifícios, desdobrou-se: nenhum tirava ela daquele denso
estado de contemplação, quase vegetal, que é costume sabido das mulheres belas quando ao uso do
transporte público.
A coisa parecia mesmo sem solução... até
que ele tentou seu último recurso, do mais ousado romantismo: gritou bem alto
ao motorista, acordando a mim e a meu vizinho, e, dentro em pouco, de cada
canto daquela lata velha, começou a tocar um bolero-brega pavoroso, de um
sentimentalismo de ano-novo na Globo. Aliás, antes fosse: aquilo era pior do
que a velhice do Roberto Carlos. Mas foi tudo dedicado ao amor, imaginem. Houve
a princípio certo estranhamento geral, mas ninguém sequer esboçou reação. No
fundo no fundo o mais provável era que todos, principalmente a mulher,
estivessem adorando. Todos menos eu, que, já vindo de um mau dia, pressentia os
sinais de uma longa tortura, já que tinha que ir quase até o ponto final.
De início não quis acreditar, mas logo me
convenci: era real, e não ia parar. E me levantei num impulso pra reclamar
daquela folga. “Não sabe ler não, meu amigo?” Diria. O jornalzinho informativo
da SPTrans, colado na frente de meu banco, trazia justamente esta lição, muito
bem desenhada, entre desenhos de pintos feitos à caneta: não se deve ouvir música
alta no busão, de modo a garantir a todos os passageiros um pouco menos de
infelicidade. Ia dizer isso mesmo, ou quase isso, ele ia ver. Mas quando vi o
cobrador de paquera séria com aquela moça, quase dançando, entendi e abrandei
involuntariamente as sete pedras que tinha na mão. Não seria assim tão
filho-da-puta: se fosse por causa da moça, ah, mulher!, tudo bem, vá lá,
esperaria. Mas só até essa história se resolver.
Altruísmo que, como qualquer boa intenção,
obviamente não seria recompensado ou sequer reconhecido. Deram uns dois pontos
e, olhando pelo espelho da frente, vi que a moça descia, não sem antes deixar
com o cobrador um papelzinho, supõe-se que com seu telefone, verdadeiro ou
falso. Aliviado, com princípios de dor de cabeça, suspirei, alegre pelo êxito
do cobrador e, ainda mais, pelo que supus ser o fim do suplício da música na
lotação. Mas não passaria de vã esperança: o cobrador, parece, tinha achado a
própria ideia muito boa (afinal, quem não gosta de música?), e resolveu no fim
das contas deixar o coletivo assim mesmo, animado agora sabe o demo com que
sertanejo dos infernos, entremeado por barulhentas propagandas de rádio. E até
então ninguém tinha reclamado: pelo jeito eu era o único que não estava feliz.
Mas não tinha como me constranger. Estava nos meus direitos, e aquilo estava
realmente me incomodando. Por fim deixei a vergonha de lado e me levantei pra
reclamar.
- Ô amigo – comecei, cordial, mas sério –
você me desculpa, mas não dá pra ouvir a sua música o tempo todo não. Nem pode
ouvir música alta assim no ônibus, você sabe disso.
O homem se virou com certo desdém, talvez por ter acabado de se provar um
gostosão, talvez pela alta incumbência dos trabalhos de cobrador. A autoridade
suprema de que era dotado, pelo visto, tinha lhe subido à cabeça, e resolveu me
tratar como eu fosse um trombadinha sujinho pedindo carona, ou um bóy pagando a
passagem com uma nota de cem contos.
- Ué, não gosta não, é, doutor? – riu de
canto, sem mal me olhar. - Dorme aí. Ou põe um fone, só não enche o saco.
Cachorro! E eu ainda tinha tentado ser
gentil.
- Não tenho fone não, bróder. E quem tá
enchendo o saco é você. Você está errado. Não sabe ler a placa ali em cima não?
Vai, desliga aí, cara, numa boa, por favor.
E fiquei olhando pra ele com uma cara séria,
fixa, sem nenhum signo de agressão mas também sem qualquer paciência. Ele até
bancou por uns segundos, achei até que fosse mandar um “você sabe com quem está
falando”, mas a saída foi ainda melhor:
- Aê gente! – gritou pra condução inteira.
O som aí tá incomodando alguém? Porque o velho aqui - e me apontou de maneira bem indiscreta – tá enchendo o
saco pra desligar.
A princípio ninguém falou nada, naquele silêncio
típico, em que todos fingem, de um jeito ensaiado, que a história não é com
eles. Mas logo uma moça cheia de tralhas
tomou coragem e respondeu, num sotaque forte.
- Não, podexá! Tá muito bom, esse rapaz aí é
que é chato.
E depois um senhor respeitável
- Não tira não, que tá bom!
E mais muitos se manifestaram em prol do
trolha do cobrador. Até tentei redarguir com a legislação, mostrando a placa no
alto do ônibus, junto com a de “proibido fumar”, argumentei. Mas quem queria me
escutar? Podia até ser linchado. E antes que o cobrador pudesse olhar de novo
na minha cara, selando sua aclamação democrática na minha mais completa humilhação,
já tinha voltado de fininho para o
meu canto, profundamente aborrecido. Quanta injustiça num ônibus! Aquilo
não podia passar assim... Agora era questão até de honra... não, não de honra,
mas de justiça, sem dúvida. Ele estava errado, ninguém era obrigado a ficar
ouvindo música nenhuma, isso é um direito! Nem que fosse Chico Buarque, vai
saber quem ali não estava cansado, e sem vontade alguma de ouvir música, como
eu mesmo estava, mas que não teve ânimo pra se manifestar? E ao mesmo tempo a
plaquinha ali em cima, tão óbvia quanto ignorada, do lado do proibido fumar...
miséria!
O ônibus parou em outro ponto. Mas ainda
faltavam uns dez.... a música não só não parava como ia ficando cada vez pior.
Agora eu reconhecia: era Ivete Sangalo. Cogitei a hipótese de pular pela
janela, mas desisti: não ia me humilhar a esse ponto, e de qualquer forma o ônibus
já tinha partido, levando um senhor que, antes de entrar, apagou o seu cigarro
e soltou, por acaso ou de propósito, a última baforada já dentro do ônibus. As
reações, claro, não poderiam ser mais previsíveis: mulheres tossiram, numa
falsidade perfeita, alguns reclamaram, houve rebuliço. Mas me deu a ideia que
faltava. Olhei pra a plaquinha no alto mais uma vez, certificando-me da coerência
de meu absurdo, e, sem pensar mais para não desistir, saquei lesto do bolso um
cigarro e um isqueiro.
- Com a sua licença – pedi, por mera
polidez, e o acendi numa longa tragada, que fiz questão de arremessar, na
expiração, para o lado mais próximo do cobrador e da concentração do seu
partido. Meu vizinho na verdade estava dormindo e não percebia nada, só se lhe
pusesse fogo. Mas as primeiras reações não tardaram a aparecer.
- Eita que cheiro é esse de cigarro?
- Nossa senhora que cinzeiro!
- É o rapaz ali ó! Ô meu jovem, não pode
fumar aqui não, cê não sabe?!
- Ah é? Nem ouvir música alta, e vocês tão
ouvindo – retruquei numa tragada hollywoodiana, realizando, no fundo, junto com
a vingança, o sonho de fumar num ônibus. Mas as reações pioravam, as pessoas
começavam a se irritar. Só o velho recém-chegado que, surpreso, julgou se
tratar de uma condução liberal e resolveu também acender seu próprio cigarro,
de palha, bastante fedido. Um outro, de um canto, também entrou na nossa e
sacou até um cachimbo.
Estavam formados os partidos. E o
antifumante já espumava.
- Moço apaga esse negócio! Não sou obrigada
a ficar cheirando a fumaça dos outros. Isso mata!
- Também não sou obrigado a ouvir essa música
aí não, que emburrece. Tá escrito lá em cima, ó! Proíbido fumar e ouvir música
alta. Só que quando eu reclamei só faltaram me bater. Agora aguentem.
E dei outra baforada. No fundo estava me
divertindo.
- Só que acontece que a música não incomoda
ninguém. Nem faz mal! – virou-se uma outra mulher, se achando esperta. – Cigarro mata e é nojento! – veio na
intenção de tirar meu cigarro de mim.
- Nojento?! Nojenta é essa música aí de vocês,
puta que o pariu, viu?! E tira a mão daí, dona! Me deixa! – Retruquei, e logo
fui aplaudido pelo velho fumante, que assistia, entre tragadas, toda a cena,
animadíssimo. Só que nisso a frágil brasa do seu palheiro acabou caindo, e
justo no vestido da moça que se sentava ao seu lado. Depois de queimar o
tecido, queimou foi a própria perna da moça, que fez um escândalo e começou a
dar bolsadas no pobre do velho, que tentava se esquivar e ao mesmo tempo apagar
o braseiro que se formava no pano. Nisso o cobrador, que se fazia de
desentendido, teve finalmente de dar as caras na parte sublevada da condução:
mas já não era só eu quem fumava, mas uns quatro ou cinco, e ele não sabia por
quem começar. Até cheiro de maconha já rolava, e um casal pomposo gritava
absurdado contra aquele vandalismo.
Em pouco a coisa se tornou uma festa, com
direito à música alta, maconha livre e o diabo à quatro, e já ninguém conseguia
se entender. A moça do vestido queimado agora batia até no cobrador, porque
ele, tentando apagar o vestido em brasa, acabou passando a mão na sua coxa. Em
volta do baseado já tinha se esboçado uma roda. Por fim o próprio motorista, um
negão de dois metros de altura, acabou perdendo a paciência e encostou o ônibus
na rua, logo levantando com um cabo de vassoura para acabar com aquela, nos
seus termos, “putaria do caralho”. Sentindo o perigo, os adesistas do partido
da fumaça rapidamente esconderam as provas do crime, mas eu e o velho, porque
envolvidos cada um em uma pendenga e sentados ambos na parte da frente, não
tivemos a mesma sorte. E sobrou pra gente.
- Que porra é essa aqui?! E essa cigarreira
do caralho?! – gritou o motorista meia-noite.
- É esse moleque aí, ó! – se aproveitou o
cobrador, me apontando, vingativo.
- E esse velho safado! – gritou a mulher do
vestido.
Sem a menor vontade de ouvir explicações,
incentivado pelo clamor popular das indignadas com o cigarro e pelo maldoso
cobrador, o meia-noite tirou cada um de seu canto, pelos respectivos colarinhos,
com toda a delicadeza que a situação exigia, e nos arremessou em dois tempos
para fora do ônibus. Por pouco não dei com a cara no chão, não fosse ter
esbarrado no velho, posto para fora antes. Depois tacaram minhas coisas pela
janela, e o ônibus partiu, deixando xingamentos. Fiquei, no fundo, até bem
feliz de terem devolvido minha bolsa e não terem tacado nenhum tijolo na gente.
Mas que tinha sido uma injustiça tremenda...! Ah, isso não! No fundo, sabia,
estava certo. Aliás, estávamos! Mas quem pra fazer a lei...
- Peço desculpas, senhor... não devia ter
entrado na minha...
- Não tem nada não, meu filho. – respondeu
o velho, fanho, limpando a roupa e se certificando da frágil integridade física.
- No fundo foi até engraçado.
- Ah é... mas que filhos da puta, ein? Eu até, nossa, devia era...
ufa! Bem, deixa pra lá, paciência. – silêncio. Cada um acendeu um cigarro. – Só
ficamos sem condução...
- Ah, mas se resolve. Aonde você vai?
Descíamos no mesmo ponto, e acabamos
rachando um taxi. Transporte que, além de mais cômodo, no caso não tinha rádio.
E o motorista, que era fumante, de quebra ainda nos deu aquela brecha.