A essas horas o bulevar Tverskói já estava completamente vazio, só mesmo a neve suja, começando a derreter, ocupava os bancos do jardim, ao centro da rua. As árvores - essas havia muito já estavam desfolhadas. Poucos carros passavam por aquele trecho. Mas o fim do espetáculo no Teatro de Arte Gorki fez com que o suspeito silêncio de uma sexta-feira se quebrasse, revelando-se do interior de todas as casas e prédios muitos bares e teatros. A multidão descia as escadarias com uma calma nervosa, ganhava a rua, seguia entre conversas ou silêncios para a esquerda e para a direita, principalmente, para a estação Púchkinskaia.
Eu devia ter ido à direita, mas por certo ânimo e certa distração de sexta-feira, tomei calmamente o caminho contrário.
Não somente pela atração do jardim vazio, sombreado pelas janelas claras e algumas lamparinas, pelas casas do velho bulevar, pela noite de sexta-feira... a tudo isso somava-se o efeito de uma peça de teatro, coisa que aos de nervos mais frágeis e imaginação excessiva sempre gera efeitos de longo prazo. Ao menos uma noite, a em que o espetáculo foi visto, dependendo, obviamente, da qualidade e da relevância da obra. No caso não só de altíssima técnica, precisão, expressividade – afinal estamos na Rússia, e num dos teatros com a mais forte tradição de Moscou -, mas também uma obra relevante para mim e ainda mais para as ruas que tentava ganhar vagamente ao ter tomado o caminho da esquerda, encarando os prédios, apertando as mãos nos bolsos contra a hostilidade dos ventos e dos raros pedestres.
Era Moscou, e não outra cidade, que os postes e uma lua cheia iluminavam com segundas intenções. E a Moscou de Mikhail Bulgákov, de cujo romance “O Mestre e Margarida” acabava de assistir uma adaptação – e que adaptação! Assim como deve ser: simples, pura, consciente que a linguagem receptora, o teatro, é distinta das letras e palavras do original. Tão forte fora o resultado, pelo menos em mim, que perdi a direção óbvia de um metrô para casa, e saí vagando com um sorriso discreto, para tudo que o bulevar Tverskói pudesse ter de simples ou extraordinário.
Moscou, 1930... ou qualquer ano próximo, na região de Patriarchie Prudy, verão. Lá dois literatos, completamente a par das tendências literárias de seu tempo – a causa proletária, a construção da União Soviética -, discutem por acaso a (in)existência de Jesus Cristo, já estando fora de questão a sua santidade (os dois são ateus). Mas um terceiro vem se juntar subitamente à conversa, com muito interesse pelas opiniões dos dois intelectuais, embora discorde categoricamente que Jesus inexistisse, e mais do que isso: para comprovar sua opinião, narra o encontro de Cristo com Pôncio Pilatos. Não qualquer versão lida em um dos evangelhos, não!, o que ele mesmo, Satanás, testemunhou com os próprios olhos.
A incompreensão dos dois literatos, que o julgam louco até que suas profecias se cumpram e eles mesmos enlouqueçam, reflete a própria tolice humana ante tudo que é maior e foge ao nosso controle. E a visita de Satanás à capital soviética traz consigo a crise de um mundo racionalizante tanto quanto absurdo, sem saudosismos românticos – um romance antifáustico, intimamente ligado às ruas e instituições de Moscou.
Moscou... dobrei outra esquina, e já não entendia com clareza onde estava. Lembrava da direção do metro, e era o bastante. De tal modo o espetáculo e a recordação de um dos melhores romances que li agitavam minhas ideias e meus pés e minha respiração, que precisava urgentemente achar... se eu soubesse o quê! Talvez um mapa me respondesse. Mas parecia claro que já tinha achado: cada passo parecia me confirmar, pois conforme me distanciava do teatro de arte a noite se tornava mais e mais clara, não por conta dos postes de iluminação sobre o jardim sombrio, mas por conta da própria cidade. O que vim fazer aqui, além de ir ao teatro?
Uma resposta: foi o romance de Bulgákov que me apresentou Moscou pela primeira vez, de forma fantástica mas real, afetiva... e ainda estranha por ser Moscou mesmo, e não Petersburgo, como a maioria dos livros russos que já li costuma ser. Não a pura abstração geométrica, não as noites brancas, não a Veneza oriental – a capital antiga, a capital moderna.
Já me aproximava do fim da rua, uma imensa rodovia, carros corriam a milhão, atrasados para festas, provavelmente... do outro lado a obra escurecida de um novo shopping-center marcava o fim do passeio romântico. Não havendo para onde prosseguir, nem sequer onde ou com quem parar, tomei o caminho de volta, com um sorriso vago atrás do cachecol e da boina , que me sombreava da lua cheia.
Depois de uns trinta passos pude avistar o jardim, novamente, mas agora podia ver uma pequena porteira aberta para o seu centro, onde um caminho levava à mesma direção do metrô. Bem mais mal iluminado, exceto por alguns trechos de postes junto a estátuas soterradas, e alguns cartazes de novas temporadas dos teatros da região. Os primeiros, pelos quais passava com calma, estavam ilegíveis pela escuridão. Mas após mais alguns dez passos pude encontrar um cartaz junto a um poste, como que feito especialmente para aquelas informações. Saindo da minha distração, percorri com os olhos cada peça e cada teatro anunciado, atenciosamente. Já não poderia ficar muito tempo sem assistir outra peça como aquela... mas a lista era imensa, e cada teatro apresentava, só no mês de março, mais de quinze peças... o frio se agitava, com pressa, soprando também no sentido da estação Púchkinskaia, envolvendo-me como um outro sobretudo. Precisava voltar! Que a programação ficasse para outro dia.
Ao tornar ao caminho aberto em meio a neve, percebi num dos bancos – vazios e escuros como todo o bulevar – há uns dez passos uma figura sentada, calma, lendo um livro que não pude identificar, tamanha era a bruma que envolvia o resto do caminho, sem postes, uma avenida zumbindo ao fundo. Não o havia visto antes. Assustei-me, a princípio, mas me recompus rapidamente e como que não pude deixar de observá-lo – e ele não dava por isso, seguia lendo, um vago sorriso iluminado de prata nos lábios pálidos, rosto bem barbeado. A roupa se fundia aos tons da noite, clara onde a lua, através dos prédios, conseguia alcançá-la, e indistinguível do banco pelos outros lados, até o alto chapéu. Ao seu lado, descansava uma bengala.
A atenção que passei a prestar nessa figura retardou ainda mais o meu passo errante, na direção do metrô, e os simples dez passos se tornaram maiores do que todo o passeio que havia feito antes. Quando me aproximava finalmente do banco, a lua reapareceu por detrás de uma das construções do bulevar, cheia, clara na noite azul, iluminando as árvores desfolhadas e o lado esquerdo do bulevar, onde outro espetáculo acabara de acabar e a rua começava a se encher novamente de ruídos e passos em direção à estação Púchkinskaia. Alguns taxis paravam, um casal murmurava ao final do jardim, onde a estação já se avistava. Por detrás do banco, um vulto negro saltou e avançou em mim, que tropecei no susto e quase cai no chão congelado, não fosse uma árvore do outro lado do passeio. Achei que ainda fosse ser mordido, mas uma corrente o deteve, e só ficou latindo.
- Siéver! Siéver! Fica quieto! O que é que é isto, avançar nas pessoas! O senhor se machucou? – dirigiu-se para mim a figura, deixando o livro sobre o banco e dando palmadas num cachorro enorme e babão, preso por uma corrente.
- N.. não, não, não aconteceu nada. Apenas... me assustei.
- Peço desculpas – sorriu o homem, com trejeitos extremamente gentis -, ele não costuma agir dessa maneira. É possível que tenha sentido algum cheiro no senhor... ou se assustado também. Mas é um bom animal. – Sorriu para o cachorro, afagando-o, mas logo reassumiu a mesma face curiosa, mirando, distraído, o chão. – Você não é russo, não é?
- Não, sou estrangeiro.
- Hum, de onde?
- Do Brasil, conhece?
- Do Brasil! – Levantou os olhos para o nada, sorrindo, impressionado – Isso é realmente fantástico! Quem diria! E me diga, ehn, qual a religião de vocês, lá no... Brasil?
- A católica, eu acho... mas também tem muitas outras, e até...
- Ah, sim, a católica, - me interrompeu, ainda fitando o nada. – De fato. Certo. Pode me dizer as horas?
- O quê?
- As horas, sabe? – me olhou muito sério. – Sabe que horas são?
- Ah, sim, sei, só um momento – apressei-me para alcançar o celular do bolso. – Agora são... quinze para a meia-noite.
- Mas já?! Por quê não me avisou? Eu preciso ir, oh, é tão tarde! Adeus, e muito prazer, meu caro Pedro! O mais próximo fica à esquerda!
Dizendo isso, guardou o livro no bolso e com a mesma mão puxou pela corrente o gigantesco cachorro, que o seguiu muito presto, abanando a cauda. Foram no sentido de que eu tinha vindo, rumo à rodovia engarrafada e às sombrias obras do shopping center. Poucos passos e já desapareciam na escuridão do jardim.
Eu ainda fiquei parado alguns minutos, apesar do frio agudo que começava a dançar em minha volta, tentando entender, basbaque, como diabos aquele sujeito sabia o meu nome, se eu não me lembrava absolutamente de tê-lo dito e ainda menos de ter ouvido como ele se chamava. Só se eu estivesse enlouquecendo, será? E ainda o que é que mais próximo fica à... esquerda? Que sujeito maluco! Não era possível, tinha lhe dito meu nome... de que outra maneira ele teria como...?
Fui caminhando cabisbaixo até a entrada da estação Púchkinskaia, ainda cismando com esses mesmos eternos e estranhos problemas, até que a vista da avenida e o cansaço pesado que sentia me fizeram esquecer totalmente desse caso anedótico. Precisava voltar para casa – em Moscou, muito longe de Pinheiros, de fato, mas mesmo assim minha casa – e dormir, urgentemente. Já nem me lembrava da impressão da peça, ou sequer que havia estado no teatro.
O metrô estava razoavelmente vazio, conseguiria voltar sentado, e depressa. Nenhum espetáculo havia acabado recentemente, só os bêbados de sempre, algumas velhinhas e jovens semibêbados ocupavam a estação. Aproximei distraído meu cartão da catraca, e ia passar não fosse o apito de “alerta gatuno” que a parafernalha começou a berrar, chamando minha atenção novamente aos assuntos prosaicos. O que houve? Tentei aproximar meu cartão mais uma vez, mas a luz vermelha se acendeu com os escritos “Cartão inválido”.
- Hum, acabou o saldo... – murmurei desanimado, me dirigindo à fila do caixa no fundo da estação, onde algumas senhoras aguardavam. Longos três minutos de contemplação da escadaria... já era o próximo. Mas quando tirei minha carteira do bolso de trás, e a abri para pegar o dinheiro, tive a agradável surpresa de a descobrir vazia – quer dizer, vazia de dinheiro, pois estava repleta de papelotes e notas fiscais, uma foto ¾ de minha mãe e de um amigo, a cópia do meu passaporte prestes a saltar fora. Foi em vão que virei e revirei todos os bolsos atrás de dinheiro, até que o sujeito atrás de mim na fila perguntou educadamente quantos anos eu ainda iria procurar, e fui para o canto do caixa. Ao todo tinha 8 rublos e 40 copeques – a passagem custa 28 rublos -, constatei com infelicidade.
- Ah não, mas como assim?! – reclamei baixinho, inconformado. – Não é possível que eu não tenha dinheiro nenhum! No teatro eu paguei 300 rublos, e... eu tinha mais, é claro que tinha... tinha? – não sabia dizer, mas achava que sim. Talvez não tivesse. Só se... lembrei do sujeito mirando o chão, depois que me assustei com o monstruoso cachorro. E a cópia do passaporte querendo sair da carteira... com meu nome escrito! Será que o canalha me bateu a carteira e eu nem me toquei? Mas, não, como assim, não era possível que eu fosse tão besta a ponto de me tirarem e reporem a carteira sem que percebesse. E ele sabia o meu nome... bem, a única hipótese razoável que restou foi a de que sim, eu sou muito besta, e de que o sujeito era um gatuno, mas mesmo assim gentil. Roubou-me o dinheiro e só – documentos, fotos ¾, cartões do banco, tudo estava lá. A solução era... bem, não sei pedir esmola em russo, precisava sacar dinheiro, constatei com ainda maior desânimo. Mas onde eu acharia um caixa eletrônico a essas horas? Praguejei e saí do metrô, virando à direita na rua fria.
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