Saudade, assim como cidade ou necessidade, é claramente um substantivo concreto. Não pode haver qualquer saudade abstrata – disso se trata a tal da nostalgia, coisas do tempo, pura indeterminação. Já a saudade é concreta, definida, pontual. Daí que não consiga entender como alguém sinta saudades do Brasil, ou do tempo em que não viveu, ou de sua juventude, enfim, semelhantes disparates. Pois essas pessoas certamente, enquanto formulam a expressão de sua tristeza, têm muito clara em suas mentes a imagem a que se refere a expressão saudade. Não lhes vêm as linhas de um qualquer meridiano, ou o RG com a data de nascimento e a data de expedição: vem-lhes uma cena na sala, um sorriso de amigo, um barulho de copo, uma paisagem, um ruído na noite, um corpo nu... nada de abstrações sentimentais, é tudo concreto, principalmente a saudade. Como cidade, ou necessidade, coisas de sufixos, repito.
Por isso me recuso a dizer que, agora, nesta noite fria e sem perspectivas, além da tela branca que se abre ao mundo que perco, sinto saudades do Brasil. Coisa nenhuma! Cada dia que passa esqueço mais da geografia de meu país, suas fronteiras, seu idioma e seus rios principais... qual a data da independência? Qual é mesmo nossa capital? E talvez por ser eu mesmo brasileiro não consiga determinar com clareza e saudade qual seja o meu povo, a minha história, minha religião oficial, nem minha raça... aqui, passo por francês, por italiano, muitos chineses ou oriundos do Oriente Médio nem sequer sabem que o Brasil existe. E de fato, me questiono, sem memória: existe um Brasil?
Não me recordo... as minhas lembranças vagam diante do portão de um cemitério, onde alguns bêbados se reúnem de noite, e também alguns carroceiros, e dormem sob os arcos do portão, sob as poucas estrelas de São Paulo, sob o silêncio dos defuntos... mas trata-se da Cardeal Arcoverde, e o barulho é todavia infernal. Minha lembrança atravessa a rua em perspectiva, sem perder de vista o eterno portão, que, apesar de marcar o fim da Cônego Eugênio, para mim é marco eterno, começo. A rua em que cresci! Numa esquina em funil a velha loja de túmulos, hoje fechada, dividia a noite com um bar de jazz, e mais para cá... o restaurante de meu pai, meu tio fumando um cigarro na porta, falando sobre o Corinthians com o tomador de conta de carro, que se encosta na parede vizinha. Outrora Maria Clara ajeitava sua bicicleta, ouvindo reggae, sorrindo calma ou praguejando, cansada. Isso já dos tempos de restaurante, porque ao longo de anos e mais anos de minha vida também foi casa, galpão, escritório, bar, loja de móveis, e num passado remoto até mesmo floricultura. Como, vindo-se mais para cá, já passando meu prédio, e a vila em que morei três anos, a floricultura do Renato. “Flores Rinaldi – desde 1953”, diz a placa na frente, e eu não duvido. Tive eu mesmo a oportunidade de conhecer o velho Rinaldi, quando criança, é verdade, italiano franzino, já velhinho, com sua eterna boina surrada, marrom perdido entre a cabeça calva e o colorido da floricultura. E sobre a floricultura, outra minha casa, outra minha rua, a rua da varanda florida em que fumava escondido e gritava pro Márcio no boteco do lado
- Márcio! Mais duas cervejas!
Quando tinha visita minha e a família estava fora, Chico Buarque na vitrola, a vista para o prédio horrível na minha frente. Mas descia e lá vinha o seu Medeiros, atrás da boina e do bigode, dois cascos na mão, avental azul, eterna e roufenha melodia assoviada, “Ô garoto!” Talvez não saiba até hoje o meu nome, mas não importa, trazia-me cerveja sobre o sol de outubro, e o cheiro de doce da fábrica nos fundos do bar se misturava ao das flores ao lado, mais a fumaça de um carro que passava, mais a poeira sobre os móveis, no LP do Chico Buarque. Pulava a varanda e estava na rua, estava no bairro.
Pinheiros! Cidade concreta, bairro dos bairros, província secreta no ventre de uma capital... outra província. Entre as desgraças diárias, trânsito, polícia, miséria, demolições, dois amigos se cumprimentam sobre um viaduto próximo, e resolvem-se por uma cerveja no mesmo velho bar, que em um mês se fecha, um amigo morre. A casa se vende, as pitangueiras secam, todo o bairro se transforma... de eterno, só os portões do Cemitério, até os vagabundos desaparecem, enxotados pelas rondas da Teodoro Sampaio. Só mesmo o Cemitério. E eu distante, alheio ao torrão natal, estranho torrão! Estranha província! Nem a perspectiva da volta é capaz de me alegrar: o bairro que vejo, agora, entre essas linhas e minhas ideias, esse bairro é eterno, sólido, concreto. É Pinheiros de fato, não o que encontrarei em agosto, carcomido, ainda mais largado, sem Largo, sem praça, sem vida... e então, sem alicerces para fundar saudade certa, vagarei perdido, preso, afogado entre sombras e automóveis, tentando recompor um bairro de cacos achados no chão, tentando recordar algo além de um sonho de infância. Enquanto o Brasil prosseguirá nos mapas, e não tenho razões para chorá-lo.
que muito lindo este texto...!
ResponderExcluirAdorei seu texto, que expressa de uma forma poética as suas lembranças e saudades de um tempo que não volta mais e que ficará para sempre na lembrança. Um grande abraço, Pedro!
ResponderExcluirRepleto de boas imagens e riqueza de detalhes. A voz tem personalidade forte! Muito bom.
ResponderExcluirBelo texto, passeei da tela do micro em direção a Pinheiros! Puxa que bairro mais vivo!
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