Ainda sobre Fernando Sabino, a grande atual redescoberta da minha vida, depois de ter sido marcado aos 13 anos de idade pela fantástica leitura d'"O grande mentecapto" e depois, aos 19, pela d'"O encontro marcado".
O livro em questão, que tem sido meu grande companheiro de viagem pelas bandas do Velho Mundo, trata-se na verdade e ironicamente sobre a América do Norte, nos anos em que Sabino viveu em Nova York, trabalhando junto ao serviço diplomático brasileiro e, concomitantemente, se correspondendo através de inúmeras crônicas com jornais do Brasil.
O livro é justamente uma compilação, feita pelo autor, de algumas das melhores crônicas que produziu nesta muito prolífera fase de sua carreira. Só o nome já denuncia o caráter mordaz, e ao mesmo tempo cômico, que o livro traz: "A cidade vazia". A cidade vazia em perspectivas, a cidade vazia em humanidade, a cidade vazia em qualquer respeito ao que mais importa no ser humano: a sua própria vida. Vejamos um trecho particularmente forte, da crônica "Carta a ninguém"
Vivemos num mundo sem infância, em que a criança é um anacronismo. É preciso que você se convença disso. É preciso que você se lembre que, enquanto está fumando o seu cigarro ou tentando uma alegria inútil como quem se movimenta entre fantasmas, há meninos morrendo de fome em todo o mundo. Sem grandes arrebatamentos, sem grotescos movimentos de protesto, sem demagogia. Principalmente sem esse doentio remorso que o assalta às vezes quando uma mão se estende, e que o faz no último momento largar dois níqueis em vez de um, enquanto sua vida continua a mesma, plenamente satisfeita, num mundo que apodreceu.
Num mundo que apodreceu... ora, o mundo não segue apodrecendo cada vez mais e mais, e essa crise no fundo no fundo avassaladora que rói silenciosamente os alicerces do capitalismo moderno não é seu maior sintoma? Ainda não podemos dizer, ainda não. Mas o fato indiscutível é que o mundo vive hoje o apogeu (e daí a crise) de um modelo legitimamente americano, exportado para todos os continentes depois da Guerra (e Sabino esteve em Nova York no ano recente de 48) e agora, como posso constatar cotidianamente, depois da década de 90, na sua forma mais grotesca e acabada.
E claro, não é só a depressão que reina no livro. Há também aquela ironia narrativa que Sabino, com a sua inconfundível maestria, constrói situações absurdas ou sintomáticas para colocar o mundo em crise, a partir de suas próprias complicações. Assim, o conserto de uma porta, uma central de atendimento de uma empresa e uma multa de trânsito se tornam, de tediosas catástrofes rotineiras, situações perfeitas para mostrar o quanto o mundo vai mal.
Mas sempre podemos rir disso, e de nós mesmos.
Eis a beleza da crônica.
O livro em questão, que tem sido meu grande companheiro de viagem pelas bandas do Velho Mundo, trata-se na verdade e ironicamente sobre a América do Norte, nos anos em que Sabino viveu em Nova York, trabalhando junto ao serviço diplomático brasileiro e, concomitantemente, se correspondendo através de inúmeras crônicas com jornais do Brasil.
O livro é justamente uma compilação, feita pelo autor, de algumas das melhores crônicas que produziu nesta muito prolífera fase de sua carreira. Só o nome já denuncia o caráter mordaz, e ao mesmo tempo cômico, que o livro traz: "A cidade vazia". A cidade vazia em perspectivas, a cidade vazia em humanidade, a cidade vazia em qualquer respeito ao que mais importa no ser humano: a sua própria vida. Vejamos um trecho particularmente forte, da crônica "Carta a ninguém"
Vivemos num mundo sem infância, em que a criança é um anacronismo. É preciso que você se convença disso. É preciso que você se lembre que, enquanto está fumando o seu cigarro ou tentando uma alegria inútil como quem se movimenta entre fantasmas, há meninos morrendo de fome em todo o mundo. Sem grandes arrebatamentos, sem grotescos movimentos de protesto, sem demagogia. Principalmente sem esse doentio remorso que o assalta às vezes quando uma mão se estende, e que o faz no último momento largar dois níqueis em vez de um, enquanto sua vida continua a mesma, plenamente satisfeita, num mundo que apodreceu.
Num mundo que apodreceu... ora, o mundo não segue apodrecendo cada vez mais e mais, e essa crise no fundo no fundo avassaladora que rói silenciosamente os alicerces do capitalismo moderno não é seu maior sintoma? Ainda não podemos dizer, ainda não. Mas o fato indiscutível é que o mundo vive hoje o apogeu (e daí a crise) de um modelo legitimamente americano, exportado para todos os continentes depois da Guerra (e Sabino esteve em Nova York no ano recente de 48) e agora, como posso constatar cotidianamente, depois da década de 90, na sua forma mais grotesca e acabada.
E claro, não é só a depressão que reina no livro. Há também aquela ironia narrativa que Sabino, com a sua inconfundível maestria, constrói situações absurdas ou sintomáticas para colocar o mundo em crise, a partir de suas próprias complicações. Assim, o conserto de uma porta, uma central de atendimento de uma empresa e uma multa de trânsito se tornam, de tediosas catástrofes rotineiras, situações perfeitas para mostrar o quanto o mundo vai mal.
Mas sempre podemos rir disso, e de nós mesmos.
Eis a beleza da crônica.
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