sábado, 18 de fevereiro de 2012

É carnaval e aqui estou eu


Sábado, 18 de fevereiro – carnaval, e aqui estou eu, escrevendo. E não é por opção: não há o que fazer em relação a esse problema geográfico-cultural. No Brasil agora começará, certamente, a festa da raça, ou para não ser tão ufanista simplesmente o meu feriado favorito. Mas lá fora, através da grossa janela que me separa do pátio da universidade, faz em torno de -12º, e se por acaso eu resolvesse ir contra a ordem das coisas, apenas pela minha vontade, e me fantasiar e sair por aí batendo panelas, o mais provável seria que me prendessem como deficiente mental ou mesmo me linchassem em praça pública. Diante de tais perspectivas, eu prefiro escrever. Escrever sobre as tais perspectivas, quem sabe, talvez me ajude a esquecê-las.
         Agora na capital da Federação Russa são 13:54, o que significa que lá pelas bandas do Brasil são por volta de oito horas da manhã. Tudo bem, tudo bem, admito: a não ser que alguém tenha tido uma noite fantástica e ainda agora esteja trançando pernas e cantando em alguma ruela suja, ou que só agora tenha parado num botequim para tomar o salvador café com leite e comer o pão na chapa que lhe darão forças para chegar em casa; a exceção desse feliz e bêbado indivíduo, agora provavelmente todo mundo está dormindo como sempre dormiu aos feriados. Mas não é essa a questão. O ruim é saber que hoje à noite todo o país tem um bom programa, e eu, aqui nessas terras semi-orientais, além de não ter nada para fazer num sábado ainda me torturo com a perspectiva de bloquinhos embriagados marchando pelas ruas das capitais brasileiras.
         Felicidade alheia é sempre  um incômodo.
         Mas não estou triste, de modo algum! E nem é minha intenção imprimir nessas ideias aquela antiquada melancolia do exílio, que depois de Vinicius de Moraes chega da vergonha de fazer, pois sempre sai brega. Eu por aqui me consolo com o meu disco favorito de marchinhas de Lamartine Babo – que de tão velhas provavelmente nem tocariam nos blocos de rua -, enquanto removo o pó grosso que cobre os móveis de meu alojamento, e fico espiando a janela ansioso para que saia um solzinho. E não é que saiu? Mesmo que desapareça logo, atrás de nuvens melancólicas e nevosas, essas coisas simples e bobas agora fazem a festa de minha vida. Apenas -12º! Belo sábado.
         Mas mesmo assim como eu queria uma festinha, um bailezinho, uma muvuca de rua qualquer onde pudesse me meter e festejar, ainda que sem muita convicção sobre a sinceridade do evento. E se ainda estivesse, não sei, 5º positivos, vá lá, poderia sair pelas ruas do centro caminhando a esmo, sem destino ou compromisso, até que aparecesse alguma coisa interessante para passar a minha tarde... mas com -12º é uma ideia estúpida, e nem luvas eu tenho mais. O frio impõe a objetividade, só sairei de meu quarto para almoçar ou caso apareça um programa certo, garantido, de hora marcada e que não acabe tarde.
         Quem sabe os russos não comemoram o carnaval à sua maneira? Não custa nada procurar... não conheço ninguém daqui, ainda não, mas é para essas coisas que hoje em dia existe a internet. Pelo menos no Brasil nunca tem erro: é só procurar, que sempre aparecem umas três ou quatro listas com a programação do carnaval na cidade em questão. Pois muito bem, digito “Carnaval Moscou Fevereiro 2012”, e cruzo os dedos para que Deus, que é sabidamente brasileiro, jogue uma luz nos resultados. Pode ser que haja festas interessantíssimas por aqui e eu não tenha nem ideia, afinal acabei de chegar, e a abertura do Carnaval Eslavo de Dvorak é bem animada, e... ah, bem. Se tiver, não está registrada no google, e esta cínica ferramenta de busca só mostra: “Tours de carnaval ao Rio de Janeiro – preços imperdíveis”,ou “Fuja do frio para o Rio de Janeiro”, e ainda “O melhor carnaval do mundo – Rio de Janeiro” e outras piadas prontas. Tudo em russo claro e legível. É engraçado o imaginário que se tem aqui sobre a Cidade Maravilhosa, notoriamente por conta do livro “As doze cadeiras”, de Ilf e Petrov, onde o herói, um malandro russo, passa o livro inteiro sonhando em ir para o Rio e que “lá tem 500 mil mulatas me esperando”. Apesar de saber muito bem que nenhuma mulata me espera por lá, não posso deixar de concordar. E há ainda outra frase, do mesmo livro, quando o herói vê que a coisa à sua volta está preta e conclui “É, isso não é o Rio de Janeiro... é muito pior.”
         “É, isso não é o Rio de Janeiro”, concluo rapidamente ao espiar a neve sobre o pátio vazio. Agora o sol já se escondeu novamente atrás de uma nuvem, ou atrás de uma das torres da universidade, não sei, mas não se vê. E as previsões do tempo não são lá muito favoráveis para o meu lado: embora não faça mais aquele frio cretino que fez no dia da minha chegada, é inverno, bolas, e a coisa só deve sair dos negativos lá pra metade de março. Já me conformei. A próxima língua que vou estudar será espanhol, e vou passar seis meses em Puerto Rico: lá tem 500 mil mulatas me esperando... que dizer, talvez isso seja muito para a população de Puerto Rico, mas não importa, se tiver uma só já me dou por contente. E tratarei de estudar com muita minúcia, alguns meses antes, como é que é o carnaval de lá, e se por acaso neva em fevereiro. Embora acredite que não.
         Mas até lá tenho um bom tempo de Moscou, onde praticamente não há mulatas e neva bastante em fevereiro. E já é meio tarde para querer importar mulatas e organizar um baile de carnaval no meu pobre e empoeirado alojamento, onde aliás elas nem caberiam, caso houvesse também uma bandinha de metais tocando Lamartine Babo. Só me resta mesmo a rua fria, a cidade branca e majestosa, onde gigantescos edifícios e catedrais coloridas, dos tempos do Tzar, se sustentam sobre os metrôs da União Soviética, de paredes recobertas com anúncios da Volkswagen e de viagens ao Rio de Janeiro, onde 500 mil mulatas etc. etc. Eu de minha parte já estive no Rio, e não compraria um anúncio desses. Mas não consigo me lembrar o que é que exatamente eu vim fazer em Moscou, qual foi o anúncio que me fisgou para vir assim tão longe de minhas terras. Certamente não foi a promessa de 500 mil russas, sou ingênuo mas nem tanto assim, e pessoalmente prefiro as mulatas, pelo menos agora, quando o que mais vejo são louras para tudo quanto é lado. Mas não há mulatas por aqui, por mais que eu procure nas ruas, nas galerias, no subterrâneo dos metrôs, nas gavetas dos móveis de meu quarto, não há nada disso. Tenho que procurar outra coisa, é claro, o quê especificamente? Não tenho ideia. Mas vou à rua fria dar uma olhada, aproveitar que o sol pálido saiu outra vez, e o reflexo na neve branca envolve tudo numa fosca e bela claridade, quase dourada, sobre as árvores e prédios mortos.
         E já que hoje é carnaval, vou me fantasiar de russo, cheio de casacos e cachecóis, com um chapéu daqueles redondos e peludos com orelhas, que aqui todos usam pra encarar o frio. Ao invés de cantar marchinhas, que não caem bem à fantasia, vou sair por aí resmungando contra a temperatura hostil e contra a burocracia estúpida, e sonhando em ir para o Rio de Janeiro, onde faz sol o ano todo e as 500 mil morenas de Lamartine Babo só esperam por mim para começar a folia carnavalesca.

3 comentários:

  1. por favor... continue escrevendo.
    você é um cronista nato.
    gostei muito. até demais.
    abraço!

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  2. ai pedro, que texto lindo... te amo muito e sinto saudades

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  3. minha filha postou seu blog no FB dela (afinal ela só coloca coisas muito interessantes!)e fui lá dar uma olhada e gostei muito de ler vc, aí tão longe, tão imerso no frio mas transbordando esse humor poético tão delicioso! foi um prazer!

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