quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A batalha de Stalingrado


Pelos portões principais do campus da Universidade Estatal de Moscou entrou um pequeno Lada, ano desconhecido, numa fria e escura manhã de domingo daquele que, constatar-se-ia posteriormente, era um dos invernos mais rígidos dos últimos tempos. Sua entrada foi pouco notada, a não ser por dois sonolentos guardas da entrada que, estranhando a chegada de um automóvel às seis da manhã em pleno domingo, puseram-se a discutir sobre de que ano seria o tal do carro. Mas não conseguiram chegar a nenhuma conclusão definitiva.
Nunca, jamais, caro leitor, queira, como este pequeno e esfumaçado Lada, chegar numa cidade ou num país completamente estrangeiro no malfadado dia de domingo! Não há nada pior para o viajante do que encontrar todas as casas fechadas, as ruas vazias, os serviços de folga... e se ele precisar de qualquer coisa, isso é, se não tiver vindo com um pacote turístico promocional e completo do próprio país de origem, ele estará completamente perdido, como eu mesmo estava, sozinho nessas terras geladas, longínquas e hostis. E o pior é que, dependendo da natureza do lugar a que se chega, tudo pode ser agravado pela massificação do dia de folga, por exemplo: suponhamos que seja uma região ou cidade muito religiosa, muito cristã. Decorrerá que o domingo será o dia santo de todos e se alguma coisa tinha a chance de estar aberta, ou se alguma pessoa tinha a possibilidade de estar na rua à toa, disponível para te ajudar, ela obrigatoriamente não estará, pois é dia de missa. E mesmo que fosse Israel, basta trocar para o sábado, o que é ainda pior para qualquer desavisado. Ou, para se aproximar do meu caso, suponhamos que o país a que se chegue seja simplesmente o mais burocrático, o mais condenado à escravidão do papel e do carimbo, o mais rico em guichês, andares, departamentos, formulários, documentos, selos, certificados, autorizações e despachos de todo o moderno concerto de nações que configura a desajustada sinfonia de nossos tempos. Pois muito bem, chegando a um país como ao que eu cheguei, e encontrando todas as referidas e indispensáveis instituições públicas fechadas para o descanso domingueiro, não te restará nada além de dormir na rua, na neve fresca e fofinha. Isso, é claro, se você não foi esperto e fez por bem reservar um hotel internacional de qualquer tipo antes mesmo de comprar as passagens ou escolher o país. Não há nada melhor e mais seguro do que depender somente do número do cartão de crédito.
Mas eu fiz por bem depender da gloriosa Universidade Estatal de Moscou, doce herança soviética, diante da qual, mais especificamente no indicado setor B, o pequeno e fumegante Lada acabava de estacionar.
         Apesar de não trazer qualquer identificação, normalmente aquelas plaquinhas luminosas, que notificasse o pedestre ou passante sobre a real função do veículo, tratava-se de um taxi, coisa muito clara para nós dois que nele vínhamos, mesmo que por dentro o veículo também não tivesse qualquer identificação sobre a sua função, nem ao menos a ocidental convenção do taxímetro. Talvez o motorista portasse um papel timbrado e devidamente assinado, dizendo tratar-se de um taxista e não de qualquer pilantra de automóvel, o que por essas bandas já seria o bastante. De fora, o dito passageiro, este que aqui vos escreve, fumava enquanto observava, pasmo e passando muito frio, a imensa construção principal, prédio gigantesco, com três torres simbolizadas ainda pelo regime soviético, onde, supunha, iria morar pelos próximos quatro ou cinco meses, caso sobrevivesse a essa manhã de domingo, de carimbos e, acima de tudo, de frio e de neve.
         Era impressionante: não só o tamanho da construção, e de todas as largas e monstruosas ruas e rodovias, ou os -25º que fazia nessa manhã, ou os imensos bosques de árvores nuas, todas cobertas pela neve espessa que caía sem cessar. Absolutamente tudo era impressionante, cada metro andado, cada floco de neve, cada indivíduo, inclusive o próprio taxista, originário de Bacu, no Azerbaijão  (Cáucaso, para os ignorantes), que me fisgou para me levar do aeroporto de Domodiédovo até a universidade por dois mil rublos, e que eu, cansado das primeiras barreiras burocráticas encontradas no aeroporto (“Passaporte, por favor”), e até pelo próprio voo, particularmente exaustivo, aceitei sem grande resistência depois de lembrar do peso de minha mala e do continente em que me encontrava. E precisava chegar logo em alguma cama, no lugar que iria morar, dormir um pouco e aí sim, no dia seguinte, resolver as mais importantes burocracias e cuidar da vida. Se o domingo permitisse.
E de fora o taxista era uma pessoa muito simpática, viemos conversando todo o caminho na medida do meu pobre e desengonçado russo, e eu dei o meu melhor para explicar que o Brasil não ficava e não fica na Europa. Ele ora fazia ponderações, ora ouvia com muita calma, enquanto corria feito um louco pelas rodovias de proporções soviéticas.
         E depois de um tempo lá estávamos, diante do imponente edifício principal, de quase trinta andares, em forma como que de catedral e com as inúmeras torres, janelas e telhados esbranquiçados pela neve que não cessava de cair. As estátuas de importantes cientistas e trabalhadores anônimos estavam totalmente soterradas.
Mas os portões de acesso ao prédio, que eram o mais importante, estavam fechados. Domingo. Ao lado, de uma pequena guarita emanava uma luzinha fraca. Detive-me por um instante, confuso, e o azerbaijão perguntou:
         - E agora?
         - Bem... espere um pouco, que eu vou lá ver se acho alguém.
         Não foi sem dor que me separei dele por alguns instantes: mal saí do taxi, uma rajada de vento veio e me lambeu o corpo inteiro, ao que este respondeu com um tremelique nervoso e passadas rápidas. Não era longe do taxi até a guarita, muito pelo contrário. Mas com todo aquele frio me pareceu uma verdadeira saga escandinava. Que Deus proteja os homens bons e bem intencionados do rigor do inverno russo! Porque ninguém mais o fará, principalmente os próprios russos, que, habituados a invasões hostis, a demonizações pelo estrangeiro e agora também ao turismo paspalhão e americanizado que nós brasileiros tão bem conhecemos, não serão lá muito gentis. E nem é por maldade, é por pura força de costume.
         - Sim?- disse um guarda, com ar de desconfiança e um pouco de surpresa, sentado num canto da guarita junto a um aquecedor elétrico. A guarita tinha o chão imundo de lama, vinda da neve, e bem no meio havia um estranho arco de madeira.
         - Perdão... bom dia... eu acabei de... ahn, ehn, eu acabei de chegar para o intercâmbio. Com quem eu preciso falar?
         - Passaporte, por favor.
         A frase certamente mais usada neste país.
         - Leve suas coisas. Você precisa ir na sala número cinco.
         Aliviado, e até surpreso pelo encaminhamento rápido da situação, respirei fundo e abri as portas pesadas da guarita. Lá fora o azerbaijão já me esperava do lado de fora, aguentando aquele frio sabe lá Deus como. Perguntou se era ali mesmo, se estava tudo certo, e, ao ouvir a minha confirmação, muito presto abriu o porta-malas e tirou as minhas bagagens de quarenta quilos. Nos despedimos com certa tristeza, quer dizer, pelo menos de minha parte, e enquanto eu me dirigia outra vez para a guarita, ele entrava no carro e já manobrava.
Só que dessa vez não era só encarar o frio desumano que soprava e nevava: tinha agora também de arrastar aquela terrível bagagem de quarenta quilos, o quê, diga-se de passagem, dificultava bastante o trajeto, principalmente por conta da neve, que se enroscava nas rodas gastas da mala e me fazia escorregar. Mas não tinha importância: estava tudo certo, seria encaminhado, encontraria minha cama, dormiria bem e no dia seguinte iria resolver burocracias e correria atrás da vida. Se o domingo permitisse.
Quando cheguei novamente à guarita, o guarda estranhou, e ficou me olhando como se eu fosse um louco ou um animal indesejado.
- Sala 5.
- E onde é a sala 5? Não é aqui?
O sujeito respirou fundo, olhou para o colega que se aquecia em outro canto, e me disse com a mesma cara.
- Claro que não. A sala 5 é no outro setor, no setor V.
- Ah, sim... claro que não. – Ignorei a grosseria. – E como é que eu chego lá?
- Hoje é domingo, a universidade está fechada. – Andou até um mapa, colado na parede encardida, e começou a explicar com muita calma qual seria o meu calvário – Nós estamos aqui, certo? – e apontou. - Daqui, você vai ter que seguir à direita até a esquina. Depois você vira à direita de novo, e segue mais um pouco. Lá vai ter outra guarita. É lá.
- Certo. É... e isso... isso tudo pelo lado de fora?
- É claro.
Gelei.
- Mas... ehn... não tem como ir por dentro? Lá fora está frio demais...
- Hoje é domingo. A universidade está fechada.
E sentou-se com muita calma no mesmo lugar de antes, junto ao aquecedor. Assustado, cansado, sem opções e sem o vocabulário necessário para discutir com a frieza protocolar da autoridade, abaixei a cabeça e engoli seco. Meu taxi! Talvez... Ainda estaria lá, o meu querido azerbaijão? Se não estivesse estaria completamente perdido, fudido mesmo, sem opções além do frio e da paciência de um santo ou de um soldado. Corri para a porta para ver se ainda o avistava, esperançoso, mas como previa no fundo de meu pessimismo, não tinha mais nada além do pátio escuro, vazio e coberto de neve, e as árvores secas ao fundo.
Sem mais nada a fazer, resignado e exausto, voltei para pegar minhas coisas do meio da guarita, enquanto o guarda me olhava com a mesma cara de surpresa e desprezo. Talvez nem estivesse tão frio assim, tentei me persuadir sem muita convicção. Respirei fundo, levantei a mala e empurrei a porta pesadona: “seja o que Deus quiser”, era a certeza..
Pus o nariz pra fora com muita coragem, estado de espírito que deve ter durado em torno de vinte ou trinta passos, até que a primeira rajada de vento veio apertar a minha mão e se enfiar, tímida e fatal, na brecha entre os meus casacos e blusas, na fresta entre a meia e o sapato, na manga da camisa, subir pela barra da calça e penetrar até os meus ossos. O frio era aterrador, ventava de todas as direções possíveis, e, de quebra, quando senti que as minhas mãos começavam a queimar e me lembrei de pôr as luvas, reparei que no bolso já não havia mais nada: deixara-as em Londres, ou quem sabe no taxi, não importa, não as tinha mais. Eram só as mãos, Deus e o frio. Muito frio. Frio demais! Meu rosto já mal conseguia articular a expressão do ódio e do desespero que eu sentia; congelara!
-Ai carai que frio da porra! – gritei com a boca quase imóvel, em português mesmo, já que ninguém ali entendia nada e nem iria me ajudar. Aliás, naquela hora da manhã e com aquele frio, não tinha ninguém em lugar algum. Só o frio, árvores mortas e muitos montes de neve, por todas as partes, que ao longe, atrás da nevasca, poderiam ser confundidos com edifícios ou pessoas paradas. Eu andava com obstinação, embora já sem qualquer coragem, repetindo mentalmente as coordenadas que o guarda, depois de olhar meu passaporte, “por favor”, tinha dito com tanta delicadeza. Dali a pouco chegaria à esquina, mas os músculos do braço que carregava a mala começavam a se contorcer e querer se contrair; os dedos doíam e mal se movimentavam, incrustados em torno da alça. Tinha de parar, não tinha jeito.
Parei um pouco, olhei a desolação à minha volta: o dia começava, alguns caminhões começavam a limpar as ruas da neve. Mas nada de sol nem de gente na rua, dando àquele imenso prédio o ar de fortaleza abandonada, prédio fantasma, como aqueles que sempre ocupam aos montes os centros de cidades grandes brasileiras.
Só que lá na minha terrinha não faria esse frio não, cacete! Depois de descansar um pouco a mão, que começava a queimar com a constância da neve e do vento, troquei a mala e fui arrastando-a com muito sacrifício até a esquina, e dobrei-a. A coisa começava a ficar realmente grave, meu corpo parecia querer sucumbir ali mesmo, não dar nenhum outro passo adiante naquela terra branca e pouco convidativa. Talvez fosse o fim...
- Morrer você não vai. – foi a única ideia que me veio à mente, e logo me reconfortou e me fez continuar, apesar do sofrimento. Tinha também a esperança de ser logo nesse setor, que tinha à minha frente, mas um rápido exame da sua estrutura me fez entender que era só outra entrada principal, fechada para o dia de domingo. Foi só mais outra decepção de falsa esperança, para aumentar meu sofrimento junto com o frio insuportável. Parei, respirei fundo outra vez e comecei a andar bem depressa, por mais que a mala emperrasse toda a hora nos montes de neve esparramados em todo o caminho. Mas quando surgiu um trecho mais plano, sem neve e regular, apertei ainda mais o passo, e comecei a tentar correr, aos poucos, intercalando descansos. Uma corrida: ufa. Duas corridas: foi. Três corriiiiiiidas: ploft. Caí de bunda na neve, sentado, e diria até que caí feito uma jaca, não fosse a absoluta sanidade das jacas em nunca sair de climas tropicais para se aventurar no frio setentrional. Quase não tive forças para levantar: fiquei sentado ali mesmo, já sem sentir os meus pés, minhas mãos, e começando a congelar, como a minha bunda já tinha ela mesma congelado. Uma vontade louca de chorar começou a subir garganta acima. Vontade mesmo de desistir, largar tudo, voltar pra casa, e...
- Tinha até graça! – me dissuadi num arroubo animal de sobrevivência. – Vai, levanta, opa, força! Morrer você não vai, não aqui, não agora. – Levantei, limpei o casaco empapado de neve, e recomecei a marcha com afinco, embora já não tivesse força para continuar arrastando a mala no caminho irregular, e a cada dez ou quinze passos tivesse de parar e trocar a mão da bolsa com a da mala, insistentemente, e a muito custo já que as mãos travavam de frio. Mas enquanto meus pés ainda conseguissem se mover, eu não iria parar, de jeito nenhum. Já tinha vindo do Brasil até aqui! Agora era tarde demais para desistir: a única maneira era suportar aquele sofrimento, aquele calvário custoso, gelado e injusto; aceitá-lo e fazer dele motor da caminhada. E pensar que aquele povo vivia ali há mais de oitocentos anos! Encarando essa neve, andando, caçando, vivendo, enfim... e ainda suportando todos os calvários da guerra, da fome, da tirania e da perseguição. E passando por cima de tudo, tudo mesmo, por cima das perdas, da humilhação, da dor. Valia a pena todo esse sacrifício? Quer dizer, a que se chegou afinal, depois de tudo? Qual foi o sentido de todo o esforço? O fim da União Soviética, e agora um país quebrado, belicoso e corrupto?
Distraído com essas ideias, em meio a tremeliques constantes e cruéis, alcancei mais outra esquina, quase derrapando de emoção ao largar a mala para mais um pequeno intervalo, antes de seguir o caminho. Mas agora era a reta final. O vento voltava a soprar, mais forte, mais gélido e determinado, o que pude constatar pelas mãos, completamente descobertas e obrigadas a ficar no frio para carregar as malas. E quando a pele se expõe a essas temperaturas tão frias, ainda mais quando tem vento, começa a arder e queimar terrivelmente, que nem quando a gente segura um cubo de gelo. Minhas mãos estavam exatamente assim. Sem saída, arranquei do bolso um lencinho que estava usando para limpar o nariz há uma semana, mandei tudo ao diabo e enrolei numa das mãos, a que carregava a mala mais pesada, e passei a revezá-lo também. Se estivesse no caminho certo, e que Deus me ajude, era o último trecho da caminhada, o que me dava ânimo, apesar de exausto e todo dolorido. Num passo mais forte a alça da bolsa que carregava a tira-colo estourou, e por pouco não se espatifou no chão de neve, não tivesse segurado a tempo, abraçado com força e posto novamente o pé na rota. Agora era tarde para consertar, ou mesmo para desistir.
         Já se avistava, entre a neve incessante, uma outra guarita, que me pareceu idêntica à primeira a que fui, onde recebi a terrível tarefa. A ideia de talvez ter dado uma volta completa e ter parado simplesmente no mesmo lugar onde tudo tinha começado me invadiu, junto com um pálido desespero . Mas não importava mais: se fosse mesmo o mesmo lugar de antes, eu entraria de qualquer forma e imploraria por ajuda, pelo menos que me deixassem me aquecer um pouco ali dentro, o que fosse. Tropecei até a porta da guarita, arrastando a mala com a pressa do último ímpeto que ainda poderia ter, o ímpeto confiante na salvação, onde se depositam normalmente todas as forças, um único lance. Entrei.
         - Com licença...! Eu...! Posso ficar um pouco aqui? Lá fora está muito frio...!
         Dois guardas, um moço e um outro mais velho, barbado, sentados num canto, me olharam com espanto, assustados com uma chegada tão brusca e uma pergunta tão direta.
         - Sim, pode, claro...
         - Esse é o setor V, sim?!
         - É sim, o setor V.
         - Eu sou... eu sou um estudante... estrangeiro, sabe? E me mandaram para cá...
         - Você é francês, não é? – Disse o guarda mais velho, com um sorriso estranho, talvez de deboche.
         - Não, eu sou brasileiro... mas... algum de vocês pode pelo amor de Deus me ajudar? Eu não posso mais arrastar essa mala... está muito frio!
         Eles se olharam, e depois olharam pra mim, com um rosto de pena. Acho que o fato de ser brasileiro de alguma forma colaborou para a sua simpatia.
         - Passaporte, por favor... – entreguei ao barbado, ao que ele olhou desatento e logo se virou para mim com o mesmo sorriso. - Você conhece o Pelé?
         - Bem conhecer, eu conheço... nunca vi ele, mas, bem, ehn, sei quem ele é. Mas vocês podem me ajudar por favor?
         - Ele te ajuda! – disse, com o mesmo sorriso estranho, apontando pro outro. – Ele é jovem. Mas vou te pedir uma coisa...
         Já tinha entendido tudo.
- Ok, ok, quanto vocês querem? Eu dou, eu dou, só me ajudem, pelo amor de Deus
         Eles se espantaram, e depois se riram, bem alto.
         - Não, não, não é isso! Você tem uma moeda do... do Brasil? É que eu coleciono – disse o mais velho, e apontou para a mureta da janela da guarita, onde diversas moedas, de diferentes tamanhos e formas, estavam distribuídas com muito cuidado. – Qual é a moeda do Brasil?
         - É o real... – respirei aliviado, e surpreso com a inocência do pedido. – É o real brasileiro... ó, pode ficar... essa é de cinquenta centavos... e essa é de um real. Te interessa nota também? Pega essa daqui, é de cinco...
         Feliz da vida, o guarda olhava as notas e moedas completamente novas que eu dava pra ele. Colocou-as junto com as outras e, perdendo aquele sorriso no rosto, assumiu uma cara muito séria e mandou que o outro sujeito pegasse a minha mala, o que ele presto obedeceu e logo já abria a outra porta da guarita. E eu fui logo atrás, abraçado com a bolsa de alça estourada. Quando eu passei, o sujeito mais velho me deu um tapa nas costas, e sorriu daquela mesma forma incompreensível, indo depois se sentar junto ao enorme aquecedor.
Pouco depois estávamos diante da porta principal do setor. O sujeito deixou a mala, desejou-me sorte, e voltou.
         Com as mãos queimadas, braço dolorido e nervos em pânico, empurrei a porta pesada, toda em madeira grossa, e dei num salão vazio e mal iluminado. Mas nada mais importava. Só queria a minha cama, nada mais, um quarto em que pudesse dormir, e no dia seguinte, quem sabe, se eu acordasse vivo, cuidar da vida. E que vida! Depois da epopeia em torno da Universidade, a -25 de temperatura, a vida certamente não seria mais a mesma. Até porque... estava na Rússia! Mas não via nada, teria de esperar até o dia seguinte...
Ora, que dia seguinte? Ainda era domingo, e, na verdade, eram já quase 9 horas da manhã. Sabia que se dormisse acordaria às duas da tarde, e minha situação ainda seria a mesma, não saberia nada, e ainda dependeria do meu russo cambaleante, caso quisesse fazer as coisas mais básicas e simples dessa ridícula vida humana, como comer ou ir ao banheiro... e antes de mais nada arranjar um quarto. Como era frágil e inútil nesse lugar!
         Estava já diante da sala 5, depois de arrastar as minhas tralhas pesadas por uma escadaria. A porta estava entreaberta, mas bati mesmo assim e entrei quando ouvi a resposta. Era uma salinha escura, onde dois velhinhos observavam um cartaz sobre pássaros. Na parede, diversos informes, cartazes e distintivos militares estavam pendurados. Certamente eram veteranos da II guerra, pensei. Entreguei-lhes meus documentos, ao que um deles pôs os óculos e começou a ler, até que se espantou, com um sorriso.
         - Do Brasil, é?
         - Sim.
         - Olha... isso é muito longe...
         Levantou-se, e pediu gentilmente para que eu o seguisse.  Passamos por diversas escadarias, corredores, andares, até que pegamos um elevador e paramos diante de um quarto. O senhorzinho sacou duas chaves pequenas, experimentou uma, que não abriu, e experimentou a outra, num clique que se abriu para a antessala de minha nova acomodação. Depois ele mostrou brevemente como as coisas funcionavam, o banheiro, o chuveiro, e tal, deixou a chave do meu quarto, propriamente, engatilhada, se despediu e me desejou boa sorte.
         E bem que eu estava precisando.
         Entrei, larguei minhas coisas num canto e me atirei na cama, num estado catártico. O aquecedor tinha ficado ligado o dia inteiro, de modo que o quarto, quase todo composto de objetos de madeira, estava um forno tão infernal que me lembrava os apartamentos em que cheguei a viver no Recife ou no Rio de Janeiro. “Agora sim, me sinto em casa!”, suspirei  com ironia, enquanto arremessava as cobertas para um canto e tirava a roupa, para dormir só de cueca, devido ao calor. Lá fora, uma claridade fosca começava a surgir nesse exato momento, justo quando eu decidia dormir. Mas não importava: eu precisava desse descanso, fosse como fosse, e aí amanhã eu finalmente... amanhã! Amanhã ainda seria domingo, ainda seria a Rússia, ainda seria a incalculável distância de tudo que me é caro e familiar. Não haveria amanhã, o amanhã era minha própria chegada, era a distância de meu chão e de minhas certezas tão tropicais e tão ocidentais. Domingo. Talvez todo corpo estrangeiro seja sempre um imenso domingo, quando cada um cuida da sua vida enquanto você, criatura perdida e alheia, não sabe a quem se dirigir para pedir serviços ou informações. Não sabe que nesse dia se reza, ou não se fala dessa forma, ou não é esse o lugar certo para se encontrar o que se deseja... Domingo, e inverno, na capital da Rússia.
         Com essas ideias, adormeci.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

É carnaval e aqui estou eu


Sábado, 18 de fevereiro – carnaval, e aqui estou eu, escrevendo. E não é por opção: não há o que fazer em relação a esse problema geográfico-cultural. No Brasil agora começará, certamente, a festa da raça, ou para não ser tão ufanista simplesmente o meu feriado favorito. Mas lá fora, através da grossa janela que me separa do pátio da universidade, faz em torno de -12º, e se por acaso eu resolvesse ir contra a ordem das coisas, apenas pela minha vontade, e me fantasiar e sair por aí batendo panelas, o mais provável seria que me prendessem como deficiente mental ou mesmo me linchassem em praça pública. Diante de tais perspectivas, eu prefiro escrever. Escrever sobre as tais perspectivas, quem sabe, talvez me ajude a esquecê-las.
         Agora na capital da Federação Russa são 13:54, o que significa que lá pelas bandas do Brasil são por volta de oito horas da manhã. Tudo bem, tudo bem, admito: a não ser que alguém tenha tido uma noite fantástica e ainda agora esteja trançando pernas e cantando em alguma ruela suja, ou que só agora tenha parado num botequim para tomar o salvador café com leite e comer o pão na chapa que lhe darão forças para chegar em casa; a exceção desse feliz e bêbado indivíduo, agora provavelmente todo mundo está dormindo como sempre dormiu aos feriados. Mas não é essa a questão. O ruim é saber que hoje à noite todo o país tem um bom programa, e eu, aqui nessas terras semi-orientais, além de não ter nada para fazer num sábado ainda me torturo com a perspectiva de bloquinhos embriagados marchando pelas ruas das capitais brasileiras.
         Felicidade alheia é sempre  um incômodo.
         Mas não estou triste, de modo algum! E nem é minha intenção imprimir nessas ideias aquela antiquada melancolia do exílio, que depois de Vinicius de Moraes chega da vergonha de fazer, pois sempre sai brega. Eu por aqui me consolo com o meu disco favorito de marchinhas de Lamartine Babo – que de tão velhas provavelmente nem tocariam nos blocos de rua -, enquanto removo o pó grosso que cobre os móveis de meu alojamento, e fico espiando a janela ansioso para que saia um solzinho. E não é que saiu? Mesmo que desapareça logo, atrás de nuvens melancólicas e nevosas, essas coisas simples e bobas agora fazem a festa de minha vida. Apenas -12º! Belo sábado.
         Mas mesmo assim como eu queria uma festinha, um bailezinho, uma muvuca de rua qualquer onde pudesse me meter e festejar, ainda que sem muita convicção sobre a sinceridade do evento. E se ainda estivesse, não sei, 5º positivos, vá lá, poderia sair pelas ruas do centro caminhando a esmo, sem destino ou compromisso, até que aparecesse alguma coisa interessante para passar a minha tarde... mas com -12º é uma ideia estúpida, e nem luvas eu tenho mais. O frio impõe a objetividade, só sairei de meu quarto para almoçar ou caso apareça um programa certo, garantido, de hora marcada e que não acabe tarde.
         Quem sabe os russos não comemoram o carnaval à sua maneira? Não custa nada procurar... não conheço ninguém daqui, ainda não, mas é para essas coisas que hoje em dia existe a internet. Pelo menos no Brasil nunca tem erro: é só procurar, que sempre aparecem umas três ou quatro listas com a programação do carnaval na cidade em questão. Pois muito bem, digito “Carnaval Moscou Fevereiro 2012”, e cruzo os dedos para que Deus, que é sabidamente brasileiro, jogue uma luz nos resultados. Pode ser que haja festas interessantíssimas por aqui e eu não tenha nem ideia, afinal acabei de chegar, e a abertura do Carnaval Eslavo de Dvorak é bem animada, e... ah, bem. Se tiver, não está registrada no google, e esta cínica ferramenta de busca só mostra: “Tours de carnaval ao Rio de Janeiro – preços imperdíveis”,ou “Fuja do frio para o Rio de Janeiro”, e ainda “O melhor carnaval do mundo – Rio de Janeiro” e outras piadas prontas. Tudo em russo claro e legível. É engraçado o imaginário que se tem aqui sobre a Cidade Maravilhosa, notoriamente por conta do livro “As doze cadeiras”, de Ilf e Petrov, onde o herói, um malandro russo, passa o livro inteiro sonhando em ir para o Rio e que “lá tem 500 mil mulatas me esperando”. Apesar de saber muito bem que nenhuma mulata me espera por lá, não posso deixar de concordar. E há ainda outra frase, do mesmo livro, quando o herói vê que a coisa à sua volta está preta e conclui “É, isso não é o Rio de Janeiro... é muito pior.”
         “É, isso não é o Rio de Janeiro”, concluo rapidamente ao espiar a neve sobre o pátio vazio. Agora o sol já se escondeu novamente atrás de uma nuvem, ou atrás de uma das torres da universidade, não sei, mas não se vê. E as previsões do tempo não são lá muito favoráveis para o meu lado: embora não faça mais aquele frio cretino que fez no dia da minha chegada, é inverno, bolas, e a coisa só deve sair dos negativos lá pra metade de março. Já me conformei. A próxima língua que vou estudar será espanhol, e vou passar seis meses em Puerto Rico: lá tem 500 mil mulatas me esperando... que dizer, talvez isso seja muito para a população de Puerto Rico, mas não importa, se tiver uma só já me dou por contente. E tratarei de estudar com muita minúcia, alguns meses antes, como é que é o carnaval de lá, e se por acaso neva em fevereiro. Embora acredite que não.
         Mas até lá tenho um bom tempo de Moscou, onde praticamente não há mulatas e neva bastante em fevereiro. E já é meio tarde para querer importar mulatas e organizar um baile de carnaval no meu pobre e empoeirado alojamento, onde aliás elas nem caberiam, caso houvesse também uma bandinha de metais tocando Lamartine Babo. Só me resta mesmo a rua fria, a cidade branca e majestosa, onde gigantescos edifícios e catedrais coloridas, dos tempos do Tzar, se sustentam sobre os metrôs da União Soviética, de paredes recobertas com anúncios da Volkswagen e de viagens ao Rio de Janeiro, onde 500 mil mulatas etc. etc. Eu de minha parte já estive no Rio, e não compraria um anúncio desses. Mas não consigo me lembrar o que é que exatamente eu vim fazer em Moscou, qual foi o anúncio que me fisgou para vir assim tão longe de minhas terras. Certamente não foi a promessa de 500 mil russas, sou ingênuo mas nem tanto assim, e pessoalmente prefiro as mulatas, pelo menos agora, quando o que mais vejo são louras para tudo quanto é lado. Mas não há mulatas por aqui, por mais que eu procure nas ruas, nas galerias, no subterrâneo dos metrôs, nas gavetas dos móveis de meu quarto, não há nada disso. Tenho que procurar outra coisa, é claro, o quê especificamente? Não tenho ideia. Mas vou à rua fria dar uma olhada, aproveitar que o sol pálido saiu outra vez, e o reflexo na neve branca envolve tudo numa fosca e bela claridade, quase dourada, sobre as árvores e prédios mortos.
         E já que hoje é carnaval, vou me fantasiar de russo, cheio de casacos e cachecóis, com um chapéu daqueles redondos e peludos com orelhas, que aqui todos usam pra encarar o frio. Ao invés de cantar marchinhas, que não caem bem à fantasia, vou sair por aí resmungando contra a temperatura hostil e contra a burocracia estúpida, e sonhando em ir para o Rio de Janeiro, onde faz sol o ano todo e as 500 mil morenas de Lamartine Babo só esperam por mim para começar a folia carnavalesca.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Outra nota de leitura

Ainda sobre Fernando Sabino, a grande atual redescoberta da minha vida, depois de ter sido marcado aos 13 anos de idade pela fantástica leitura d'"O grande mentecapto" e depois, aos 19, pela d'"O encontro marcado".

O livro em questão, que tem sido meu grande companheiro de viagem pelas bandas do Velho Mundo, trata-se na verdade e ironicamente sobre a América do Norte, nos anos em que Sabino viveu em Nova York,  trabalhando junto ao serviço diplomático brasileiro e, concomitantemente, se correspondendo através de inúmeras crônicas com jornais do Brasil.
O livro é justamente uma compilação, feita pelo autor, de algumas das melhores crônicas que produziu nesta muito prolífera fase de sua carreira. Só o nome já denuncia o caráter mordaz, e ao mesmo tempo cômico, que o livro traz: "A cidade vazia". A cidade vazia em perspectivas, a cidade vazia em humanidade, a cidade vazia em qualquer respeito ao que mais importa no ser humano: a sua própria vida. Vejamos um trecho particularmente forte, da crônica "Carta a ninguém"

Vivemos num mundo sem infância, em que a criança é um anacronismo. É preciso que você se convença disso. É preciso que você se lembre que, enquanto está fumando o seu cigarro ou tentando uma alegria inútil como quem se movimenta entre fantasmas, há meninos morrendo de fome em todo o mundo. Sem grandes arrebatamentos, sem grotescos movimentos de protesto, sem demagogia. Principalmente sem esse doentio remorso que o assalta às vezes quando uma mão se estende, e que o faz no último momento largar dois níqueis em vez de um, enquanto sua vida continua a mesma, plenamente satisfeita, num mundo que apodreceu.
Num mundo que apodreceu... ora, o mundo não segue apodrecendo cada vez mais e mais, e essa crise no fundo no fundo avassaladora que rói silenciosamente os alicerces do capitalismo moderno não é seu maior sintoma? Ainda não podemos dizer, ainda não. Mas o fato indiscutível é que o mundo vive hoje o apogeu (e daí a crise) de um modelo legitimamente americano, exportado para todos os continentes depois da Guerra (e Sabino esteve em Nova York no ano recente de 48) e agora, como posso constatar cotidianamente, depois da década de 90, na sua forma mais grotesca e acabada.
E claro, não é só a depressão que reina no livro. Há também aquela ironia narrativa que Sabino, com a sua inconfundível maestria, constrói situações absurdas ou sintomáticas para colocar o mundo em crise, a partir de suas próprias complicações. Assim, o conserto de uma porta, uma central de atendimento de uma empresa e uma multa de trânsito se tornam, de tediosas catástrofes rotineiras, situações perfeitas para mostrar o quanto o mundo vai mal.
Mas sempre podemos rir disso, e de nós mesmos.
Eis a beleza da crônica.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Estranhíssimo matutino

         Agora são quase meio-dia aqui em Moscou, e, finalmente, o sol se resolveu a dar as caras, entrando pela grande janela do fim do meu quarto, sobre o aquecedor de 1950 e tantos. É um alívio tremendo, talvez o maior que sinto desde que cheguei aqui, maior até do que quando descobri que não teria de dormir na rua, ou quando  descobri que meu colega de quarto é um alemão também completamente perdido nestas terras estranhas, esfumaçadas, terras de gigantes, onde os edifícios mal se avistam uns aos outros, tamanha a largura das ruas e dos ombros dos pedestres encasacados, nunca sorrindo.
         Junto ao sol, uma outra das torres da universidade Lomonossov de Moscou se ergue, imponente na sua antiguidade, e se caso eu desconhecesse por completo as suas entranhas, onde vivo e viverei pelos próximos meses, diria sem dúvida tratar-se de uma estrutura eterna e sólida. Mas as ruínas se formam onde menos se espera, e um mato crescido na varanda hoje pode ser a árvore que tragará a pedra com suas raízes... nenhuma suspeita se fundamenta, até que se confirme nas estações de metrô, num gesto súbito, num escritório da universidade, no próprio vento que sopra nessa cidade de fantasmas.
         Ainda não tive coragem de sair de meu quarto. O frio, o medo, a insegurança com uma língua eslava, convertidos todos numa preguiça doentia, se somam em todas as minhas tralhas mal arrumadas e também na minha própria carcaça, maltratada por uma manhã de peso e neve e por um colchão duro, embora meu. Sem contar a forte bipolaridade climática que parece imperar por todo o país, ou ao menos nessa universidade, passando de frios insuportavelmente fustigantes para calores dignos de los trópicos, devido à senilidade dos sistemas de calefação. Ou à minha própria senilidade.
         Como distinguir a incapacidade própria da hostilidade alheia se ainda não me arrisco a ir ao corredor? Parece que não quero acreditar no que vivo, não quero ir ao corredor porque lá tudo em mim vai desmoronar, e é tarde demais para correr, cedo demais para parar. E eu também estou inválido e ossificado, de que valho aqui, neste país tão distante? A resposta permanece, talvez, além das torres da universidade, além do papel de parece, além da minha própria compulsão em escrever.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Controle alfandegário

Depois de doze horas de voo, alguns vídeos informativos com criaturinhas rechonchudas da companhia aérea, no caso a Tam, sanduíches de constituição totalmente estranha (aparentemente frango), três ou quatro doses de whisky (se o sujeito for esperto) e uma noite muito mal dormida, apesar da simpática criatura sentada ao seu lado, bonita mas mais calada do que poderia ser, ao viajante internacional que se direciona do Brasil para a Inglaterra e até talvez para qualquer outro país da União Europeia é indispensável, em primeiríssimo lugar, dar as caras ao controle de imigração, para se certificar da inutilidade ou não dos não sei quantos mil dólares gastos na passagem aérea.        
Ou melhor dizendo: em segundíssimo ou terceiríssimo lugares, porque ainda compete ao tal viajante, neste meio tempo, vestir uma série de inúmeros e curiosos casacos, nos mais diversos formatos e eficiências, mas todos denunciando o frio excessivo que um indivíduo do terceiro mundo sentirá sem falta ao desembarcar no primeiro, nos tempos de inverno lá e verão cá, ou vice-versa. Alguém inclusive chegou a me dizer que esse é na verdade o primeiro teste no controle de imigração, que quem estivesse sem casaco, ou com um só, muito específico e apropriado, passaria direto como cidadão europeu, com direito até a comprimentos do guardinha da alfândega. Mas como eu sou friorento e vivo às beiras de uma  constipação, ignorei este boato besta e fui, como um esquimó gordinho, andando pelos corredores do desembarque, arrastando as toneladas de bagagem que trouxe como “indispensáveis”, morrendo de vontade de ir ao banheiro, mas desanimado ante a perspectiva das muitas e muitas camadas de roupas que inventei de vestir ainda na saída do avião.
Já trazia nos dedos o passaporte, a passagem, o endereço de onde iria me hospedar, com o telefone e CPF da respectiva responsável, o papelzinho azul da imigração (distribuído no avião junto com o whisky), um atestado da inexistência de antecedentes criminais e ainda uma cartinha de recomendação da minha avó, caso houvesse alguma dúvida de que sim, eu sou um cidadão de bem, na verdade o tipo de cara que você sempre quis deixar entrar no seu país, por favor, sim? Na minha cabeça de perfeito caipira dessa dita “aldeia global”, o controle de imigração contaria com policiais, cães farejadores, burocratas de coque e até mesmo, tratando-se da Inglaterra, um oficial bigodudo da Scotland Yard, todos me interrogando sob o veto de um detector de mentiras e ao som insistente de um datilógrafo, documentando todo e qualquer pormenor ou vacilo de meu desempenho. Mas depois de percorrer aquela infinidade de esteiras e corredores gelados, fui parar em uma sala vasta, que em nada se parecia com o lugar escuro e austero criado pela minha imaginação. Muito pelo contrário: era tudo claro, num clima de seriedade nada excessiva, com seis ou sete caixas até que bem educados atendendo a enorme fila de brasileiros que chegava do desengonçado e turbulento voo. Mas mesmo assim alguma coisa perigosa restava naquele ambiente, alguma coisa traiçoeira por detrás daquela formalidade aparentemente descontraída. Principalmente no tom de voz com que uma mulher atarracada e séria chamava um por um cada indivíduo da longuíssima fila do controle de imigração. Reparei que um sujeito havia sido chamado para um canto da sala, e entrei na fila de mãos nos bolsos e cabeça baixa.
Pus-me a organizar meus documentos. Sim, não tinha dúvidas de que tudo estava certo e que não haveria qualquer erro. Não tinha onde ter erro. Mas mesmo assim... a incerteza da eterna suspeita sobre si mesmo, sobre essa única pessoa que sempre saberemos tudo o que fez e mesmo algo do que ainda fará, se apoia com malícia sobre meu ombro toda vez em que me exigem honestidade, moral ou noções cívicas. Coisas católicas... E não tinha como ser diferente. Meus documentos estavam organizados, claro, e muito bem, por sinal, mas mesmo assim parecia que alguma coisa ainda estava fora dos padrões, muito embora eu não a achasse de jeito algum, e só iria aparecer na hora certa em que uma autoridade estivesse me assistindo, no afã de prender ou dificultar a vida de alguém pelo simples tédio que deve ser um serviço desses de burocracia de aeroporto. Talvez um papel manchado, um documento suspeito, uma palavra escapada... Deus, como é péssimo o meu inglês! Há quanto tempo não praticava? Falaria tudo completamente errado, nem nas frases mais básicas eu teria chance... que belo vexame. Só pelo meu inglês, bem o sabia, já seria vetado.
A fila andava, e já me aproximava do balcão que ficava de frente para os oficiais, onde a mulher gritava um a um para que se dirigissem ao guichê x ou y. Vi ao seu lado um aviso do governo britânico, sobre o porte de plantas, animais ou objetos estranhos à realidade local, que poderiam ser proibidos ou mesmo disseminar pragas ou terríveis epidemias no país. E embaixo, para terminar, as consequências que o indivíduo teria de arcar com caso desrespeitasse a declaração de bagagem: multas altíssimas e deportação. Chega me deu arrepios: traria eu comigo qualquer planta perigosa? Qualquer animal raivoso de que me esqueci mas que aguardava na minha mala o momento certo de espalhar seu mal? E quem sabe...
- Ora, isso é ridículo – afastei semelhante ideia de minha cabeça, ainda tentando achar a melhor forma de organizar os papeis, que se enroscavam e embaralhavam entre as minhas mãos nervosas. O momento fatal se aproximava, e já podia ver a fisionomia dos oficiais do controle alfandegário: dois homens austeros, de óculos, cabelo curto e barba escanhoada, um quase careca, sem grandes mudanças na expressão ou arroubos de qualquer tipo. Metódicos. Ao lado esquerdo uma moça negra e compenetrada, e mais à esquerda ainda um homem em cujo rosto se lia claramente: “indiano”. Mas quem mais me chamou a atenção foi um sujeito meio gordo, de fisionomia muito agradável sem qualquer perda na seriedade, clássico tipo do “careca-cabeludo” como o era Vinícius de Moraes no fim da vida. Andava de um lado para o outro sempre com a mesma calma, e pude perceber que procurava alguém entre os atendentes que falasse português, para ajudar um pobre diabo que não bastasse ter se enrolado com a documentação nem sequer com o inglês sabia se virar. Mas deu a sorte grande de ter o tal do sujeito por perto, que se dispôs a achar alguém e, tendo achado, o encaminhou para um canto para que se resolvesse. E logo depois de o ter encaminhado, cumprimentou o sujeito de óculos que atendia bem na minha frente, falou alguma coisa no incompreensível sotaque britânico e assumiu o seu posto no guichê.
Como eu queria ser atendido por ele! Daí certamente não haveria problema nenhum, ah, não tinha como! Com um sujeito tão simpático, que até se dispôs a ajudar o coitado que não sabia inglês... mas só tinha uma pessoa na minha frente, e agora? Esse era um homem curioso, com uma estampa da “Rádio Londrina” bordada no paletó azul, chapéu preto de aba curta, e logo foi chamado pelo homem que julguei ser o salvador de minha pátria. Ou de minha expatriação. Para não ser atendido por outro, meu Deus... Tudo já estava em ordem, tudo, tudo mesmo? Bem, seja o que Deus quiser! Não tenho crimes, ao menos crimes que interessem a um controle de imigração, ao menos que me lembre. Mas bem que eu poderia ser atendido pelo sujeito... no caixa da esquerda, uma mulher começava a tentar discutir com a mulher que a atendia, mas também sem se exaltar. Ali, ufa, a coisa ainda parecia demorar. Mas à direita... o sujeito que se apresentava sacava os documentos com tanta naturalidade, com tanta destreza, que até pensei que diabos ele estava fazendo ali e não na fila para habitantes britânicos ou da União Europeia, pois seus trejeitos eram de um desses. E estava sendo atendido justamente pelo outro sujeito de óculos, tipo sério e diria até meio mal humorado. Se caísse com ele certamente teria problemas, menos porque os tivesse de fato do que simplesmente por estar nervoso, em uma situação oficial que exigia do meu pobre e surrado inglês uma presença de espírito ao menos simbólica.
Mas a hora se aproximava, eu já era o seguinte na fila. Vi com desespero o guichê do indiano vagar, assinando a minha sentença de lidar com uma pessoa na qual em nada confiava, quando ouvi chamarem na minha frente.
Era mesmo o tiozinho bacana! Arrastei meus quarenta quilos de bagagem para frente, quase tropecei e fui me escorar no guichê, onde o homem me esperava com um sorriso protocolar, mas gentil. Logo pediu meus documentos, os que eu já vinha preparando desde a saída do avião, ao que eu prontamente enfiei a mão tremulante no bolso e, ao puxar o caderninho do passaporte, derrubei uma porção de papéis pelo chão, não sem algum estardalhaço e atrapalhação.
- Você derrubou alguma coisa?
- Ah, é...sim... meu endereço... aqui, meu endereço aqui.
- Ok. Seu passaporte. Quanto tempo você pretende passar em Londres?
- Três dias.
- E com que fim?
- Visitação, somente.
- E depois desses três dias, aonde você vai?
- Para Moscou.
- Hum, e o que você pretende fazer em Moscou, além de congelar, é claro?
A última pergunta, que incluía por mera gentileza um gracejo até que divertido, por ter sido, como toda a sua fala, feita no sotaque britânico, inglês alheio à nossa formação americanizada, me desconcertou. Porque ao invés de simplesmente dizer para ele que não tinha entendido, e pedir que falasse mais devagar, eu só me enrolei inteiro com algumas palavras que saíram incompreensíveis em qualquer sotaque de qualquer língua, ao que ele ficou me olhando com o mesmo sorriso gentil e protocolar, até repetir a pergunta e o gracejo.
- Ah... eu, eu vou... vou estudar.
- O quê?
- História.
- Muito interessante. Você já estudava história no Brasil?
- Sim, já.
- Ok... muito bem, mr. Pinto -  e meteu um gigantesco carimbo na terceira página do passaporte -, tenha uma boa viagem. “E um bom dia”
Esse último “bom dia” foi pronunciado em um português quase perfeito, não fosse a melodia inconfundível do inglês britânico, a cantar por detrás das palavras de minha língua. Devolveu meu passaporte e indicou onde poderia retirar o resto da bagagem. Realmente me impressionei com a gentileza que o sujeito teve ao me dirigir as palavrinhas em português: seriam novos tempos aqui nas Europas? Vai saber... o que uma crise não faz com um modelo de civilização? E isso era só a entrada do aeroporto, o internacional de Heathrow. Depois de pegar minha mala, não sem certa dificuldade para identificar em qual esteira ela estava passando, segui cabisbaixo e confuso rumo à saída para o metrô. Ainda na porta, à direita, lia-se sobre um outro guichê: “Declaração de Bagagem”, com os mesmos informativos de antes sobre as penalidades e tudo o mais. Parei pra pensar um pouco: “não teria eu qualquer coisa que...?” Mas logo mandei tudo ao diabo e, arrastando meus cinquenta quilos de bagagem, me dirigi à porta automática, que se abria para a civilização britânica.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Um ano-novo

       Acordo em outro 31 de dezembro com a cabeça querendo explodir. Era um sábado, e como já sabia de antemão como iria passar o meu ano novo –  outra vez em São Paulo, com um almoço de família e sem festa nenhuma nos planos –, havia aproveitado a noite anterior de uma forma até desnecessária, como que compensando não só o ano que passou mas também o que viria, e a virada calma, sem champanha ou perspectivas, que iria passar com a família em clima de gula e austeridade.
         De pijama, barba mal feita, olhos pregados, cambaleei com muito esforço até a cozinha para preparar um café. Ainda ignorava, na modorra de uma qualquer manhã de cansaço, o fato de ser o último dia do ano, bem como de já não ser mais manhã coisa nenhuma, mas sim quatro e meia da tarde.  Depois de botar a água no fogo e pasmar com a geladeira aberta, ia voltar para a cama quando tive o azar de esbarrar com os olhos no relógio, ao lado do calendário.
         - Puta que o pariu!
         Acordei, e corri para a sala atrás de uma solução: a casa já estava vazia, e, em cima da mesa, jazia um bilhetinho de minha mãe em que se lia “tentei te acordar, mas não teve como.... fui para a casa dos seus avós”. O que devia ter sido à uma da tarde, para quando o almoço tinha sido marcado. Bem, agora é que eu estava feito! Voltei pra cozinha para me certificar da data e do horário de Brasília: 16:35, 31/12.
         A sentença era mesmo fatal. Desanimado e um tanto abatido, desliguei o fogo e me sentei junto à mesa descoberta, toda cheia de migalhas. Já era tarde para tomar café da manhã, para pegar um ônibus ou um metrô para a Zona Norte, onde há quase quatro horas minha família tinha começado a almoçar; era tarde para pensar em uma solução... e também era cedo demais para tomar um pilequezinho em algum bar, cedo para assistir os fogos da Paulista ou de Copacabana pela televisão, e era cedo para simplesmente dormir de novo e acordar em outro ano, achando que muita coisa mudou, inclusive a minha própria vida.
         Talvez só não fosse tarde para o almoço, o que eu precisava providenciar com certa pressa já que em breve tudo estaria fechado, e todos em festa. Enfiei uma roupa um pouco mais bonita do que o normal, em virtude da data, e saí pela rua, descendo a Teodoro até que me lembrasse de algum restaurante próximo em que pudesse comemorar, ainda que só e sem pompa, o ano novo. Quanto à família, ora, ao diabo! Era muito provável que, no domingo seguinte, fosse como de costume almoçar na casa dos meus avós e ver todo o mundo.
         No caminho, como sempre, encontrei uns dois ou três conhecidos e vizinhos que passeavam com a família, e que me desejaram um feliz ano novo, até com bastante sinceridade. Mas no meu sonolento estado espírito, somado ao clima típico de São Paulo ao fim do ano, nublado, quente, abafado, sem vento, esses cumprimentos me fizeram pensar, não sem certa descrença, em tudo aquilo que se passava todos os anos, da mesma forma. “Feliz ano-novo, claro! Mas... bem, no fundo, o que é que muda? Quer dizer, o que é que tem de propriamente novo nisso tudo? Se depender do calendário, vai ser outro janeiro, outro fevereiro, etc. etc. ou seja, nada de fantástico, de extraordinário, de novo...  Nessas horas a Paulista deve estar cheia daquele povo que vem do interior, pra tirar foto da decoração de fim de ano e pra ver o show de, de... de sei lá o quê. E bem, de fora, segunda-feira eu e todo o Brasil vamos trabalhar como trabalhamos nesse e em todos os outros anos... e eu vou seguir o mesmo caminho, esses mesmos viadutos, e entrar na mesma rua de sempre.”
         Nesses pensamentos atravessei o viaduto da Matheus Grow, sem reparar muito na vista pra Belmiro Braga, nem na ausência da quitanda de sempre, e me aproximei da Fradique Coutinho. Em resumo, pensei com ironia, o caminho que faço para ir ao trabalho, o trecho da rua onde fica o japonês em que passa o Datena, a vendedora de bilhetes, e outras coisas prosaicas. A vendedora certamente não estaria lá, mas na esquina pude constatar, com alegria, que o japonês de sempre estava aberto e que, portanto, já tinha um bom lugar para o meu almoço de ano-novo.
         Ao contrário do que eu temia (me atrasar ou pegar a casa já prestes a fechar) não só estava aberta como bem cheia, sendo que com sorte consegui arranjar uma mesinha, perto da calçada. Chamei o garçom e pedi bife à parmegiana – que estava com vontade de comer já há não sei quantos meses –, e fiquei olhando para o bar. Logo reparei que a casa não estava só cheia, mas cheia de todos os fregueses que têm sua cadeirinha e seus dias cativos no estabelecimento, que conversam longamente com o dono, e que até têm lá suas preferências no cardápio já sabidas do garçom. Mas estavam todos muito alegres, alguns estavam de pé, e era claro que todo mundo ali já se conhecia, nem que fosse só daquela mesma tarde.
         Achei tudo aquilo muito engraçado, como as mesmas pessoas de sempre, no mesmo lugar de sempre, numa certa data, convencionam se reunir e comemorar sabe-se lá o quê exatamente . Nisso chegou o meu bife, e me pus a comer, ainda debochando interiormente da alegria humana. “Ano-novo de novo!”, ri um pouco amargo do péssimo trocadilho, mas logo comecei a pensar mais seriamente. O que viria, de fato, de realmente novo pela frente? Olhei para aquele bar cheio, para a rua movimentada, procurando por qualquer traço de novidade ou de mudança nos orelhões, na calçada estreita, nos sacos de lixo junto ao poste, nas lojas fechadas... talvez essas fossem a única diferença daquele dia em relação aos outros. Mas também, que grande diferença! Igual a qualquer domingo, assim como o silêncio nas ruas, e os fogos que seriam lançados no final do dia: no lugar do futebol de sempre, hoje será ano-novo... e amanhã, o que será?
         Engoli outro pedaço de bife e me detive nessas reflexões meio tristes, meio conformadas com o passar dos anos, olhos fixos no fundo encardido do bar, onde se abriam portas ao banheiro e à cozinha, mas sem reparar em nada, distantes, focados num ano que ainda estava por vir. E nesse instante a frase do poeta, emprestada pelo cronista, veio parar na minha mente: “assim eu quereria a minha última... o meu último dia do ano. Ou o meu ano seguinte. Assim eu quereria meu ano seguinte....”
Enquanto isso, sucedia-se no meu campo de visão um movimento anormal vindo da cozinha, que só depois de uma certa algazarra conseguiu me tirar do ensimesmamento escuro em que me afundava. Do fundo do bar, o japonês, que, descobri por um grito, se chama Jorge, trazia em seus braços algumas garrafas que quase caíam, junto com um grande sorriso e seus olhos puxados resumidos a dois traços pretos e alegres. A família o ajudava, e o bar inteiro começou a se mexer e se voltar em sua direção. Só então percebi que o garçom que me atendia tinha acabado de deixar uma taça em minha mesa, assim como em todas as outras. Nisso, o japonês, o Jorge, abrindo uma a uma cada garrafa verde-claro, com um rótulo azul e um desenho de uma maçã, foi passando nas mesas e oferecendo “um pouco de cidra?” a cada um dos fregueses. Também aceitei – era uma cidra barata, a champanhe dos pobres, dessas que se vendem a cinco reais em qualquer supermercado. Depois que todos estavam servidos, o Jorge foi ao centro do bar e propôs, bem alto, um brinde, “ao ano que passou e a todos os que virão, e que ainda veremos”,  e todos os clientes se viraram para o mais próximo para bater os copos. Sentava-se ao meu lado um senhorzinho que sempre via por ali, tomando sua cerveja, sozinho normalmente, na mesma mesa. Já devia estar meio bêbado, e quando brindamos ele estava com um sorriso enorme e bobo de emoção, os olhos rasos d’água. Depois nos abraçamos com votos de felicidade, e terminei o pouco de almoço que ainda restava junto com ele, por alguns instantes até em silêncio, mas na mesma mesa, e meio que se entendendo interiormente.
Na hora da despedida, nem trocamos nossos nomes, na certeza de que ainda nos veríamos – sempre nos víamos! Levantei-me para pagar, e encontrei o sorriso do Jorge e de seu pai, o outro japonês velho e rabugento que fica às vezes por detrás do balcão,  e ambos me saudaram, desejaram feliz ano-novo, felicidades, etc. etc., com a mesma cordialidade, e, talvez, com o mesmo amor. Não sei se pelo efeito da bebida, não sei se por ser 31 de dezembro, saí daquele boteco de coração pleno, alegre com a tranquilidade das ruas e com os muitos novos meses que viriam pela frente. E a frase do poeta e do cronista se repetia torta, a cada passo através dos viadutos, nos meus botões “assim eu quereria o meu último... meu último dia do ano, meu ano seguinte: que seja alegre como aquele brinde.” Chegaria em casa e ligaria para a família, para desejar-lhes, como desejei a todos os desconhecidos, tudo que de melhor houver no porvir, e também ligaria para os amigos que, talvez, tivessem ficado por São Paulo e não tivessem programa. Até a virada ainda faltavam seis horas. “Veremos”, pensei.