Vai qualquer outra coisa, e aviso logo: isto aqui não é uma
crônica.
Venho tentando compor, dos
retalhos confusos de uma vida insossa, pequenas anedotas, comentários, ou
mirabolações sobre tudo que se passa ou que poderia se passar nesta triste
capital de estado sulista. Mas esse fim de semana não deu. E por um certo tipo
de maldição moral, que empurra os escritores para a máquina mesmo que só pra
sofrer de tédio, cá estou eu explicando as minhas faltas para o leitor que, muito
provavelmente, está cagando para meu atestado de incompetência.
E é pior:
não há nada de original nesse tipo de artifício. Lembro-me agora de Drummond,
no seu formidável “Cadeira de balanço” – mas não sei ao certo o que o poeta
inventou no lugar da crônica faltante. Certamente não foram desculpas. E de
fora ele mesmo ainda cita, por escrúpulos, outro caso de inadimplência
literária confessa, referindo-se ao autor apenas como “o célebre cronista”, que
me parece se tratar de Rubem Braga.
Ou seja: já não bastasse não ter
escrito, não ter o que escrever e estar enrolando desculpas, de quebra ainda
corro o risco de estar fazendo plágio, quase um biplágio, um plágio
terceirizado, uma monstruosidade, enfim. Mas se contasse tudo que me privou,
nestes dias, do convívio torturante e maravilhoso do Microsoft Word, teria ao
menos o consolo da irreprodutibilidade inata de cada vida, e, dentro dela, a unicidade
de cada fim de semana.
Lá vai um esboço.
O escritor
– na cabeça de qualquer ser honesto que queira ser um escritor – é uma espécie
de santo. Deve se manter impassível diante das tentações terrenas, eternas e
modernas, fazer da vida o que também o Drummond já dizia em seus versos: “um
sol estático, que não esquenta nem ilumina”, ou qualquer coisa assim. Deve
dormir pouco ou quase nada, acordar muito cedo e ter sonhado com imagens e
motivos para a sua nova obra experimental-surrealista, que está para escrever
já há dois anos e que muito provavelmente morrerá sem escrever, dilacerado em
crônicas, resumos, resenhas, e quinta-colunismos em geral.
A boemia cai muito bem em filmes
hollywoodianos, ou na imaginação glamorosa de certos inocentes – mas é inimiga
feroz da literatura. Primeiro porque no tempo em que você enche seu copo de
Brahma, comprada por sete reais à garrafa, era pra você estar em casa começando
o seu romance. Depois porque, bebida a primeira a segunda a quinta garrafa
(R$35,00 que você não tem, porque não escreveu nada), você começa
invariavelmente, na sua inconsolável frustração de escritor perdido no mundo, a
falar das obras e manobras que você está fazendo ou que sem sombra de dúvida
ainda há de fazer, corrompendo seus projetos com estúpidos e etílicos arroubos
narcisistas, submetendo-os aos intermináveis pitacos das mais antipoéticas
criaturas da noturnidade (poetas sem versos, pintores sem telas, músicos sem
melodias) e por fim – questão de saúde pública – caceteando o lazer de todos os
infelizes que tiveram por bem se sentar à sua mesa, excluindo pela chatice qualquer
possibilidade de arranjar companhia que te arrefeça as frustrações alcoolizadas.
Inevitável
conclusão: bêbado, sozinho, e, dependendo dos tipos com que anda, com uma conta
onerosa registrada seu nome.
Outra
abominável armadilha para pegar escritor é a internet. Em tempos de pouco
lirismo, nada mais caduco do que o escritor sentado atrás dos papéis em uma vasta
escrivaninha de mogno, presidida pela majestade nostálgica de uma Remington ou
de uma Olivetti, com bustos barbudos prendendo folhas soltas e um cinzeiro
abarrotado de bitucas. O escritor de nossos dias, se não quiser ser mais
anacrônico do que já é par excellence,
tem que trabalhar com um computador: se moderno, usará o Windows; o pós-moderno
não dispensa o Macintosh. E ambos serão igualmente tentados, ao finalmente
conseguir se sentar junto à máquina com o intuito de escrever, pelos detalhes
coloridinhos dos ícones do Chrome, do Explorer ou do Firefox. E daí já é um
abismo sem volta, um labirinto de abas e janelas... notícias frescas, e-mails
importantes, vídeos engraçados, letras sentimentais, joguinhos viciantes,
mensagens intensas...
Isso para não mencionar o
Facebook, que já seria uma crônica à parte... e isto, antes que eu me esqueça,
não é uma crônica. É antes qualquer coisa de desagradável, uma confissão
absurda de um incompetente que não conseguiu dois dias para escrever uma reles
historinha, um causo, qualquer coisa de minúsculo e de humano que mereça ser
contado para a alegria de poucos, sem que o autor, espécie de evangelista,
ganhe o que quer que seja por isso. Mas pelo contrário.
Poderia contar, num artifício
retórico, das peripécias que me afastaram das letras nesta última semana. Da
pomposa festa junina de anteontem, e da consequente ressaca de que ainda me
curo, depois de ter bebido uísque com gim e batida de maracujá, ensinado forró
a uma francesa, escorregado no trânsito e quase voado pra debaixo de um carro
pra acabar às quatro da manhã comendo macarrão com minha mãe, também chegada da
balada, no velho apartamento da rua Cônego Eugênio. Poderia falar da polícia
montada, que estava na Vila quando quase fui atropelado, desfilando pomposa e
fedegosa pela rotatória da Fidalga, e que hoje passou num trote calmo e
ameaçador pelas portas desse restaurante, em cujo subsolo eu vos escrevo... ou
ainda, quem sabe?, descrever a quermesse da Igreja do Calvário, com seu
animador tão insuportavelmente animado que seus gritos alcançam até mesmo este
buraco onde eu tento me isolar, tornando este ingrato ofício de beletrista fajuto
ainda mais impossível... e vou parando por aqui. Todas essas histórias,
reflexos vagos de um conteúdo humano, seriam assuntos, talvez, para uma ou duas
outras crônicas.
E isto não é uma crônica. É só o
que deu pra fazer.
Pedro, muito legal o texto! Li ontem e hoje entrei no blog; bem legal. Vc tem uma pomposidade que eu admiro. Li o penúltimo também, do aumento do valor da passagem, muito bons o ritmo e a ideia. Parabéns. Vou tentar frequentar o blog. Abraço! Davi
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