sexta-feira, 6 de julho de 2012

Enfim


         Agora o trem Moscou - Petersburgo começa a se mover lentamente, naquela preguiça como que de começo de dia, que sempre acossa os trens no começo de sua largada. Por razões de tração, obviamente, mas a hora tarde, o calor insuportável e o meu próprio cansaço reforçam essa visão tão poética quanto forçada. Não restam muitas outras distrações num trem russo de terceira classe, até que o sono bata e se decida finalmente arrumar a cama, na parte de cima do pequeno compartimento, quando os companheiros de viagem, enviados por Deus ou pelo diabo, finalmente calarão a boca, a criança parará de chorar, e quando finalmente, depois que o brutamontes ao lado tiver caído no sono, você poderá abrir a janelinha para trocar um pouco este ar parado e morno, carregado de respiração e suor eslavos, que os russos insistem em achar normal depois de passar frio por cinco meses.
         Mas só me resta conformar-me. É uma das lições que levo desta cidade, coisa que, ainda bem, não pesa, já não bastasse a mala entupida de suvenires, obras de Liérmontov e um incômodo e espaçoso pato de madeira que um amigo fez a gentileza de enviar como presente à minha mãe. Se fosse para mim, tinha jogado fora, mas isso não se faz com presente alheio, ainda mais se tratando da nossa mãe. Pelo menos a ironia e o conformismo não ocupam tanto espaço quanto essa tralha volumosa. A reflexão vazia é distração barata e portátil.
         Fosse qualquer outra cidade e este seria um momento triste, saudoso, pela concentração num único instante das experiências passadas, que me abandonaram assim como a paisagem rola, cada vez mais rápida, por essa janela embaçada. Ainda alguns momentos felizes me vêm em mente, mas nada que supere a alegria incomparável de deixar uma etapa difícil de minha vida, uma cidade hostil, de clima estranho, e gente ruim. Como inveterado saudosista, para quem o passado deixado para trás, no momento de sua morte, sempre assumiu traços fantásticos, é de se estranhar a euforia vertiginosa que esse trem vai me causando, cada vez mais forte conforme toma velocidade e me certifico de que não se trata de um sonho ou uma viagem qualquer: abandono Moscou, eis a alegria. O que também pode ser apenas um consolo involuntário, ou, hipótese mais provável, o efeito da meia garrafa de vodka que bebi em solenidade com os amigos, a título de despedida.
         “Ah, os amigos”, suspiro, olhando os casebres e galpões que flutuam ao lado do trem. Pelos amigos não posso deixar de lamentar. Por mais que alguns já tivessem ido, e outros fossem no dia seguinte, despedir-se foi penoso mesmo assim. Gostaria que ao menos algum me acompanhasse agora, não só até a estação de trem, como um casal fez a gentileza de me acompanhar, carregando o pato e as obras de Liérmontov, mas por todo o caminho, por todas as estações, cidades, hósteis em que me alojarei, bares em que tomarei, sozinho, uma cerveja sem graça, e quiosques em que comprarei um salgado murcho para enganar a fome, como tantas vezes fiz, acompanhado, nos subterrâneos de Moscou. Mas essa é uma vontade tola. Ainda que me aguarde o encontro com um grande amigo em Petersburgo, e mais outro na distante Budapeste, serão como que visões espasmódicas. E por isso crueis: a realidade mesmo é que vou só, e assim se vive.
         Por inspiração de trens e bebidas, cito: viver é perder amigos, segundo o poeta de Itabira, deslocado às páginas novaiorquinas do cronista de Belo Horizonte, ao seguir num taxi ao porto que o levaria de volta ao Brasil. Não sou cronista e de quebra vou de trem para bem longe do Brasil, de modo que já me envergonho das linhas acima. Mas como a própria vida não se apaga, deixo-as lá mesmo, esquecida até segunda instância, como o galpão vazio que acaba de voar pela janela à infinitude do espaço abandonado.
         Pena grande que o bêbado incômodo da cabine ao lado não possa voar pela janela também.
         Agora a estepe começa a se insinuar entre alguns restos de cidade, ampla, plana, verde, dividindo o mundo com um céu preto e sem estrelas, aonde os russos há algum tempo já chegaram, mas por onde o caminho de ferro ainda não passa. Por ligar dois pontos, a estrada leva consigo tanto a saudade quanto a esperança, e meu caso os dois ainda se confundem: é como se o trem seguisse para casa, através desse céu  e de um mar negros e de mais uns tantos Atlânticos, e não para ainda mais longe, como de fato segue, ao norte da Rússia, para as margens do Báltico. Mas nesse vagão abafado, ao me deitar apertado no meu lugar superior, essa sensação confortante é o melhor que me resta, já que não consigo dormir. Se for verdade que viajando o tempo passa mais rápido, de certa maneira estou mesmo no caminho de casa, e ao mesmo tempo, quem sabe, no caminho de cinco meses atrás. Ainda que trens não façam esse itinerário: pelo menos em São Paulo é certo que reverei amigos, os mesmos que me deixaram quando mudei de continente, apesar das mensagens, votos, curtidas, e tudo o mais. Tudo isso como que reforça a ausência, e é preciso encontrá-los, ainda que fora deste trem ou continente, ou pior, neste lado do mundo mesmo, mas meses depois, para ter certeza que a volta se fecha, e o presente vagão se deixa para trás.
Bem nos lembrou o cronista que, se viver é perder amigos, algo bem diz que revê-los é morrer aos poucos.
         Se, por exemplo, de súbito esse trem invertesse a sua rota e me deixasse na estação Leningrado, como que de chegada: caminhar pelos corredores agora vazios da Universidade Estatal de Moscou, passar um calor infernal nas mesmas ruas em que por pouco não virei picolé, ver os velhos teatros com velhos repertórios, inauguração de prédios, o país marchando em ordem sem perspectivas de eleições, engolir grosserias dos moscovitas pelo gigantesco subterrâneo do metrô, enfim; na anacronia absoluta de um tempo que já se fechou, a cidade me seria, como São Paulo talvez venha a ser, completamente absurda, ainda mais do que já foi,  o que de certo modo justifica a alegria que sinto neste momento, ainda que o vagão esteja abafado, meu lugar seja incômodo, e o bêbado esteja cantando algum hino de time de futebol. O diabo que o carregue.
         Gostaria de dormir, como, apesar do bêbado, muitos já fazem. Mas a imaginação aguçada pela viagem e pela bebida não facilita, e agora, tendo encerrado o passado, começa a vagar pelo futuro, tão bem descrito no bilhete de trem: São Petersburgo, e só. De fato, o que o futuro nos oferece agora além de lacônicos nomes de cidades, meses, pessoas, funções...? E mesmo assim, quanta coisa um nome de cidade carrega consigo! Depois de tanto tempo (tanto!) em Moscou (tanto?),  agora vou de fato para o lugar que quis vir. Ainda que seja uma cidade turística, congelada, de clima hostil, todos os frágeis elos que me ligaram à língua russa parecem sustentar a história desta cidade, e eu, eternamente iludido, sigo para lá neste forno em forma de trem, certamente para passar frio depois, e quiçá decepções. A imaginação faz estragos com a vida da gente, impõe no mundo os seus desejos e este, sem respostas além de seu próprio existir, segue indiferentemente sem graça. E eu pensando na cidade de Púchkin, de Gógol, de Dostoiévski, de Akhmátova...  quem sabe não me espera outra Moscou, mas ainda pior e mais cruel, como a cidade fantasma do funcionalismo público que Gógol descreveu, ou a cidade de delírios de Dostoiévski? Coisas lindas de se ler, convenhamos, mas e a vida de fato? E o que é a vida de fato, o que deixei no Brasil? E...
         Não seria melhor ir dormir? Agora que o bêbado já capotou, as crianças dormem, e posso arriscar temerariamente abrir um pouquinho a estreita janela? Seria o  melhor... mas não quero, eis o problema. A cabeça funciona a milhão, ainda que, ao contrário do trem, cada vez mais lenta, conforme o álcool se esvai do sangue e sinto vontade de ir ao banheiro, e segue insistindo em olhar a janela, como se a cidade fosse aparecer a qualquer momento, e como se o sono fosse um erro fatal: durmo, e o mundo se desfaz. E acordaria talvez muito longe, quem sabe, em algum recanto da Europa, ou mesmo de volta ao Brasil, finalmente. Mas na letargia da janela que roda, agora com as luzes do vagão já apagadas, creio que também seja possível chegar a algum lugar, ainda que São Petersburgo.

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