Era uma tarde daquelas meio, bem, nem bonitas, nem feias, meio acinzentadas mas mesmo assim muito quentes, que costuma fazer em São Paulo no mês de janeiro quando o calor não é totalmente infernal. Mas mesmo assim, apesar desse climinha que sempre desanima muitos, eu seguia com cara de bacana pela Teodoro Sampaio, cantarolando um tema de Gershwin, olhando para os lados, atrás de flagrantes de esquina ou de garotas bonitas na frente das vitrines. Eu me sentia particularmente bem esse dia, estava vestido com uma camisa listrada, calças recém-lavadas, e levava minha bolsa a tiracolo, com cadernos e livros, como sempre. Estava de barba feita e cabelo cortado, um pouquinho mais descolado do que normalmente ando, com minhas roupas e gestos de senhor de idade.
Talvez fosse isso o que me fizesse sentir um pouco mais bacana... mas que também pode ser motivo de cautela: a Teodoro Sampaio é hoje em dia uma das ruas mais policiadas de toda a capital, depois que houve uma história de arrastões e assaltos quase crônicos ao comércio da região. A Associação Comercial chiou – como é de lei – e poucos dias depois inúmeras duplas de homens da lei passaram a patrulhar, com passos calmos e olhar sério, esse nosso glorioso e triste bairro dos Pinheiros. Devem ficar por aqui pelo menos até o fim do ano eleitoral, quero crer, e depois os crimes que se resolvam com o novo prefeito. Há muito que já me acostumei a essas rondas, que de início me deixavam bem constrangido até quando não tinha nada de errado, mas mesmo assim nunca se sabe: sou jovem, cara de descolado... tenho amigos que simplesmente por estarem vestidos desse ou daquele jeito foram abordados com toda a delicadeza característica dessa nossa instituição civil, herdeira dos anos de chumbo, e por isso não me descuido: olhar baixo, cara séria, possíveis provas contra mim mesmo sempre ao alcance da mão... e depois que passam, volto a andar normalmente, à paisana.
Mas estava um sábado tão agradável, pelo menos na minha cabeça, que até me esqueci destes procedimentos de segurança pública para se andar normalmente na Teodoro Sampaio. Estava quase sorrindo de bobo, olhando um grupo de meninas que passava do outro lado da rua, quando reparei num enorme vulto cinza, avançando lentamente na pista contrária, como uma onça... primeiro só tinha percebido a parte dianteira da blazer, enorme, possante, e achei que fosse um desses carros de bacana querendo fazer pose para as mesmas garotas que eu tinha reparado... mas depois, quando joguei discretamente um olhar mais atento ao veículo, pude ver a oficialidade da coisa, representada nas cores e no letreiro que se impunha na lateral:
R...OTA
Aos desavisados, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Confesso ignorar, apesar de ser graduando em História, quem foi o ilustre cidadão Tobias de Aguiar, quais as suas contribuições à nação brasileira ou, ao menos, ao estado de São Paulo. Mas não é preciso saber de Tobias de Aguiar nem de mais ninguém para perceber como e o quê fazem as tais Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Basta olhar um pouco acima do letreiro, em letras garrafais sobre o plano cinza da viatura, e ver homens de cara fechada e até mesmo um pouco assustadora, para fora, debaixo de uma boina ao estilo militar, como cães ou falcões a espreita da caça, intenção que as enormes e assassinas geringonças que seguram para fora do automóvel parecem confirmar sem titubeio. O titubeio aqui se confunde com o próprio instante fatal. De armas também eu entendo tanto quanto de Tobias de Aguiar, mas não é lá preciso um conhecimento enciclopédico para ver, ou ao menos imaginar, qual a potência assassina dessas pistolonas. Se a compararmos com a humilde pistolinha que portam os policiais militares, podemos chegar a tratar estes por “você” e confundi-los com um guarda de trânsito ou mesmo com um civil, um segurança, um tomador de conta de rua. Não que não seja um revólver, objeto destinado unicamente a cravar peças de chumbo na carcaça alheia, mas a impressão ao ver um carro da ROTA e suas quatro bazucas – inclusive a do motorista – para fora do carro pode gerar semelhantes disparates.
Eu pelo menos fiquei completamente besta, tremeliquei. Não sabia nem onde colocar os olhos, que, vagando nervosos entre a calçada e a rua, acabaram por esbarrar com as faíscas raivosas do olhar de um dos homens fardados. “É o meu fim!” pensei, enfiando as mãos no bolso, mas me acalmei ao perceber que ele nem tinha dado conta, e a viatura ainda avançava mansamente, implacável. E ai de quem buzinasse! O jeito era seguir com a mesma calma de antes, quer dizer, olhar reto, tentar recompor o sorriso, e o assobio... bem, não, assobiar com a ROTA ao lado é falta de respeito. Cantarolar, talvez, e olhar as meninas... isso. Tentei me recompor à caminhada habitual, mas logo tropecei em uma caixa e quase me espatifei no chão, trombando antes num casal. Boa, Pedro! Agora todo mundo já sabe que você é um assassino em série, quer dizer, não! Nunca matei ninguém! Eles precisam saber disso, sou inocente!
A viatura já até tinha passado, mas com essa minha sorte, claro, terminou por parar no próximo farol. Com a distância pude pensar um pouco melhor: será que houve algum crime hediondo aqui pelas redondezas? Olhei com suspeita envolta: um casal passeava, um velho levava o seu cachorro... hum, esse cachorro, bem que... não, não, é só um cachorro. Quem sabe na padaria não houve um arrastão, um esquartejamento compulsivo e sanguinolento? Mas ao olhar o balcão, dois tiozinhos discutiam apontando para a tv, e uns rapazes comiam seus x-saladas... ora, o que houve, então? Tudo muito suspeito nesse sábado...
Pude ver que a viatura agora se movia ainda mais lentamente, como se fosse encostar... e do meu lado da rua! E reparei que me olhavam, agora diretamente. Deus, não é possível, só pode ser comigo! Mas o que foi que eu fiz! E como eles souberam? Ah, meus amigos, meus falsos amigos! Algum é delator, algum certamente é delator, contou a eles que eu... mas cacete, eu não fiz nada! Só se... mas será? Não, não tem como, isso não... será isso? Justamente isso? Como, tão discretamente? Ora, eu fui tão delicado! Não, eu sou inocente! Inocente! Eu sou inocente? Ah! Já não sei mais de nada, vou me confessar, é melhor, é melhor!
A viatura como que por ironia ou justiça se aproximava de mim, que já suava frio e rezava as poucas orações que me foram ensinadas. Bem, o meu dia chegou! Não tinha como escapar: se corresse eles descobririam tudo, ficaria evidente, quem deve teme. E a viatura parou, com os seus quatro canhões postos para fora, minhas pernas começaram a tremer, a vista escureceu... era isso, não havia saída. Pelo menos me manteria digno, impassível... e tentaria ligar para minha mãe, ela entenderia, me perdoaria... ai, minha mãezinha!
As duas portas da viatura que davam para a calçada se abriram, e os homens saltaram de arma em punho, gritando: “Mão na cabeça vagabundo!”. O sujeito logo largou da carroça de papelão e das sacolas que carregava, e foi puxado por um dos oficiais até o canto, onde, com um chute na perna, começou o interrogatório. O abordado da vez era o Gervásio, morador há muitos anos do arco do portão do cemitério São Paulo, na Cônego Eugênio Leite. Aqueles que já foram abordados pela polícia, em geral, devem conhecer os procedimentos e o profundo respeito ao cidadão brasileiro que essa nossa instituição emprega ao velar pela justiça. Especialmente na abordagem daqueles que, por descaso ou por pobreza, esquecem a carteira de identidade junto à esteira. Eu, de minha parte, nunca passei por isso, e fiquei bastante impressionado... mas não parei para olhar: graças a Deus, não era comigo! Dessa vez eu passei, mas... não, não, eu não fiz nada!
Segui aliviado, contente, e aos poucos consegui recompor o sorriso de bacana com que passeava antes de passar por essa situação, talvez um sorriso até mais bonito e agradável. Estava uma tarde de sábado tão boa...!
Só não consigo entender qual foi o crime do Gervásio.
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