sábado, 24 de dezembro de 2011

Festividade


A essas horas em que escrevo o Natal provavelmente já se consumiu em cada mesa, farta ou nem tanto, das famílias dessa cidade, e já todos estão de pança cheia, preguiçosamente conversando sobre qualquer coisa com um parente que há muito não se vê ou, ainda, com um parente que se vê todo dia ou toda semana. Mas o importante mesmo é a barriga cheia. É pelo menos como eu me sinto depois de passar um dia inteiro entregue a petiscos e doces e refrigerante e cerveja etc. etc.
Deus, para quê tanta comida num dia só? Certamente não tem nada a ver com Cristo. Nem nunca teve. Para além do ídolo Papai Noel, a quem louvamos pelo consumo-recompensa pela labuta de outro ano sofrido e feliz, parece que o natal era um feriado pagão em que a Igreja se meteu de abelhuda, para ficar mais pop entre os bárbaros e tudo o mais. Mas o papa não contava com São Nicolau nem com seus aliados os meios de comunicação massivos de difusão da cultura norte-americana, que fizeram o mesmo lance da Igreja, só que fizeram direito, deixando o pobre do Cristo no chinelo. E o papai Noel, hoje, impera soberano sobre os corações brasileiros. Inclusive sobre o meu cansado, ébrio e obeso coração pós-ceia.
Poderia, entre um arroto e outro, dar um viva ao papai Noel. Ele merece. Seria um gesto de honestidade, depois de comer tanto, um gesto coerente com as minhas práticas, apesar de mentalmente abominar aquela roupa vermelha e quente (é verão, cacete!), aquelas musiquinhas infernais que se desdobram em mil propagandas, a decoração da av. Paulista e as milhares de avenidas da Zona Oeste da capital paulista que têm suas árvores apertadas e eletrificadas com pisca-piscas, tortura dos bêbados e de outros sequelados, como eu. Como eu desprezo isso tudo! Desprezo mas mesmo assim acabo de voltar da casa de minha vó, que, velha marrenta e amargurada, raramente se permite arroubos de afetividade, e hoje me deu um beijo sincero e disse me amar. Ao que eu retribui com igual sinceridade, “eu te amo” e tudo o mais que cabe em uma cena de amor familiar. Esse amor... esse amor eu não desprezo, não consigo e nem quero desprezar, quer dizer, só quando aparece televisionado, na cena da novela, por exemplo, quando me tentam impô-lo.
Eis as contradições em que essa vida nos mete! Contradições como a de, agora, por exemplo, estar meio bêbado, farto, meio pra baixo, e com fogo no rabo por uma festa qualquer que me anime e distraia do natal, enquanto lá fora, quero crer, ele crepita nas famílias que o comemoram até a meia-noite com rigor de ritual. Enquanto eu estou aqui, crianças rosadas, e também morenas, abrem seus embrulhos de papel colorido e barato com alegria e talvez até volúpia (se conhecessem essa palavra). Enquanto eu estou aqui, escrevendo, um gordo e suculento Chester ainda é calmamente servido, mastigado e engolido, em meio a conversas agradáveis, no apartamento ao lado, eu posso escutar. Enquanto eu estou aqui, os pisca-piscas de todo o Brasil exercem nervosamente a única função que têm, na única época em que a exercem, pois amanhã mesmo algum desavisado compulsivo pode metê-las novamente em um lixo ou em um armário. E até parece que, de todo o universo, eu sou a única criatura em quem essa substância natalina, de pura e verde alegria, se recusa a se manifestar, se recusa a derramar suas bênçãos, se recusa a aparecer em sua totalidade e plenitude mística, como na televisão ou no apartamento do vizinho. Porque se há, de fato, um Natal, se ele realmente existe e deve existir, ele tem de ser essa substância profunda... ou então ser uma farsa total.
Mas como, farsa? Se na tv todos comemoram, solenes, e se a av. Higienópolis e outras burguesas avenidas simplesmente refulgem ofuscantes com bilhares e bilhares de luzinhas amarelas e azuis? Se consigo ouvir os risos e gritos do apartamento vizinho, se minha barriga está assim tão cheia? Acho mais fácil eu estar simplesmente errado, e ponto.
Eu, e toda minha vida, claro. Ainda lembro da casa de minha vó: a tv estava ligada, como sempre, e sentamos, eu, meu pai e meu avô, junto à mesa de centro. Como sempre os dois falaram sobre negócios, tudo vai mal, tudo legal, fulano fez isso, enfim. Depois eu e meu avô conversamos sobre Getúlio Vargas e sobre o rombo da previdência – igualmente uma conversa nossa de todo santo domingo. Depois comemos... e não havia ninguém especialmente convidado, alguém que eu só visse por causa do natal, algum parente distante, mesmo que nem tão querido, mas exótico, algo que justificasse a enorme quantidade de comida e a existência das luzinhas, piscando na árvore de natal sintética junto ao telefone. Nada disso: eu, meu pai, meus avós, meu tio e minha tia, irmã gêmea de meu pai, e minha prima, mais velha, mas “especial”, isso é, com síndrome de Dawn. Afora minha vó, que havia se vestido com muito cuidado e gosto para a data, minha prima era a única realmente comovida com a data em si. Andava de um lado para outro, ansiosa, soltava frases emocionais sobre o evento e se decepcionou profundamente quando me viu comer bem antes que a meia-noite soasse.
-Pedro, você vai comer agora? Não pode isso.
-Mas por quê, Ju? – perguntei sem levar a sério, colocando um pedaço de leitão no prato.
- Porque não pode. É natal, tem que esperar até a meia-noite         . Antes não pode comer.
- Poxa, se eu fosse esperar até a meia-noite, eu ia era ficar faminto! – ri, e continuei a comer, ignorando o ritual que minha prima, tímida e amorosamente, tentava instituir sem força naquela casa. Mas ninguém a levaria a sério, como normalmente ninguém levava. Comeríamos, cada um no seu turno; conversaríamos sobre as mesmas coisas e, pouco tempo depois, iríamos embora, eu e meu pai, apesar de seu olhar sincero, atrás dos óculos, de tristeza e reprovação. Depois, confesso, senti remorsos, poderia ter sido mais compreensivo, tentado projetar na atmosfera da sala alguma magia. Já fui criança, eu acho, soube ver certa graça mágica nessas comemorações até mesmo depois de descobrir a verdade sobre papai Noel. Mas hoje, entediado, alguns quilos mais gordo e alguns anos mais velho, incapaz de sentir qualquer magia nessa história toda, me contento em tentar entender de onde vem esta mistificação... não me contento com Cristo e tampouco com o capitalismo internacional. Não explicam o beijo de minha avó e nem a expectativa de minha prima, não explicam a alegria que imperou soberana sobre o apartamento do vizinho, agora já calado. Tem outra coisa aí. Mas não entendo nada além da minha dor de barriga e da vontade que sinto, louca, de ir beber antes que a noite acabe, antes que o ano acabe.
Afinal de contas, antes de ser natal, hoje é sábado de qualquer maneira. Espero que as ruas, pelo menos nisso, estejam de acordo comigo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Excerto sobre via pública

        Paro, e passo certo tempo olhando o caminho que sigo. Já são pra lá de 9 horas, mas a Teodoro ainda tem movimento, carros, pedestres, ônibus, e mesmo os prédios ainda dão claros sinais de vida. Vejo por exemplo este residencial de uns 10 andares, com uma galeria embaixo, letreiros “Mazzaro”, que beira o viaduto da Matheus Grow. O saguão da galeria e do elevador, que normalmente serve de café e fila de lotérica, ainda está bem iluminado, e habitado, por algumas famílias e suas crianças bem alimentadas. Realmente bem alimentadas, gordinhas, e felizes, em alguma festinha de fim de ano, presumo.        
         Os risos e as luzes se projetam pela via pública. Noite de verão, faz um calor muito a propósito, o céu está claro e, como sempre em São Paulo, sem estrelas. Alguns helicópteros, talvez, e satélites e aviões, mas sem qualquer lua. Os prédios nessa altura da Teodoro já são esparsos, e a imensidão da capital paulista, em sua infinita massa concreta, se revela no sentido da av. Paulista. É uma bela noite, essa de São Paulo, mesmo que não tenha mar, que não tenha estrelas, mesmo sendo só cidade e barulho, ainda assim alguma calma consegue pôr o nariz para fora na noite de sábado... as ruas já não têm tanto barulho... a Teodoro tem alguma calma, mesmo a festinha infantil já tendo ficado para trás. Sigo adiante, não tenho pressa mas isso não significa necessariamente que tenha tempo. Preciso ir para casa, todos estão indo para algum lugar, principalmente os automóveis.
         Daqui há algumas horas haverá um engarrafamento.
         Mas por enquanto a calma impera, ao menos na rua de minha casa. Talvez seja calma só por ser de minha casa, assim como toda beleza. Mesmo o prédio mais horroroso de todos, com uma galeria de móveis por debaixo, fechada, e com uma péssima vitrine, consegue ganhar qualquer beleza só por ser a marca de minha rua nos céus, na vista pública. E isso porque tem uns 20 andares, é grotesco, meio amarelo, como é possível? E mesmo a Teodoro, imunda, rangendo ainda umas buzinas e sons de carro, como consegue ter ainda algum tipo  de beleza?
         É curioso... é apenas o caminho de casa, e prossigo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

De volta


Meu retorno ao bairro de Pinheiros, ou melhor, meu retorno à rua Cônego Eugênio Leite em seu trecho entre a Teodoro Sampaio e a Cardeal Arcoverde, onde nasci e me criei, foi um verdadeiro fenômeno na freguesia, não só para mim como para todos os amigos, comerciantes e vizinhos que ainda moravam e vivam por lá. Alguns me conheciam desde muito pequeno, e eu fiz questão de tornar minha chegada um evento público: depois de dois anos, quase três, longe do bairro que me fez ser quem eu sou, longe de seus dois viadutos, do cemitério, das floriculturas, dos botecos, de suas ruas planas, dos pinheiros, enfim, e de todos aqueles que dão vida às ruas do bairro, eu estava de volta na minha velha residência, na qual praticamente toda a minha história havia se passado.
    Mal terminei a mudança e já fui pela rua espalhar as boas novas, a começar pelo boteco do seu Medeiros, onde quando pequeno eu pegava tampa de coca-cola pra trocar por cacarecos e comia batata-frita escondido da minha mãe.
- Boa tarde, Márcio! Você não sabe, estou de volta aqui na rua!
    O dono do boteco saiu do fundo, estranhou um pouco, mas respondeu sorrindo.
- Opa, beleza Pedrão? Tá morando aqui de novo é? Bem, seja bem vindo!
    E me ofereceu uma cerveja, que bebi com mais dois ou três sujeitos que frequentavam aquele bar desde que me dou por gente, e que, já meio alcoolizados, também ficaram muito contentes com a minha volta à Cônego Eugênio. Depois foi a vez da floricultura do Renato, em cuja sobreloja cheguei a morar no último ano que passei naquela rua.
- E aí Renato!  Passei pra dar um oi, to de volta aqui na rua!
- E aí meu irmão,  voltaram pra cá no fim das contas? Só não me vai arrebentar a lona da floricultura outra vez... – e riu. Conversamos um pouco e me despedi.
    Depois veio o Cláudio, da banca de revista, o Joaquim da barbearia, o Seu Águido, zelador do prédio, o porteiro de outro prédio, o dono da padaria e o Nélson, o velho Nélson, aposentado que morava há não sei quantos anos numa das casas da frente junto com um cachorro. Todos me receberam com tanta simpatia e carinho, que tive certeza de que aquele era o meu lugar, de onde nunca deveria ter saído na vida.
    Mais para a noite, como nos velhos tempos, ia descer a Cardeal pro trecho dos bares, mais movimentado, só que para aproveitar o meu retorno chamei um amigo que havia se mudado há pouco tempo para a rua, para um prédio vizinho. Quando desceu, logo expliquei que nesta noite nós iríamos comemorar.
- Mas comemorar o quê? – perguntou meio perplexo.
- Como o quê? A minha volta aqui para o bairro, claro!
- Mas... Como assim para o bairro? Você não morava na Cristiano Viana?
- Exatamente.
- Isso é aqui do lado, cacete!
- Acho que você não entende muito dessas coisas – lamentei, com paciência. – Veja, a Cristiano Viana pode até ser aqui do lado,umas quatro quadras para cima, mais precisamente... mas o fato é que, olha só, sabe a Henrique Schaumman?
- Sim, o que é que tem?
- Depois da Henrique Schaumman... não é Pinheiros, é Cerqueira César. Outra história, entende? Outro bairro... é mais caro, não tem tantos botecos, pelo contrário, tem mais lojas de música, edifícios novos... umas lojas de roupa.  E é uma ladeira só, até o Hospital das Clínicas. Até que umas coisas legais, mas... não, não é Pinheiros de jeito nenhum. É Cerqueira César, é um outro bairro.
    E como a comemoração fosse pretexto para que eu pagasse uma rodada, acabou trocando o ceticismo pelo entusiasmo, e bebemos à minha volta até as duas da manhã, quando subimos a Cardeal, margeando o cemitério, de volta à Cônego Eugênio Leite, agora quatro quadras mais perto do que na noite anterior.

domingo, 20 de novembro de 2011

Desterro


   Entrei naquele bar, aliás, agora já restaurante ou lanchonete, na r. Fradique Coutinho, como sempre entrava nos tempos já idos de anos atrás. Mas desta vez com o coração na mão – não imaginava que já tinha passado tanto tempo, nem que justo ali pudesse ter o PF mais barato da paróquia. Mas tinha certeza de que ninguém mais ia se lembrar de mim.
   Tudo normal, para um horário de almoço numa terça fria de junho, com os habitués engravatados de sempre também encoletados, aproveitando como podiam o intervalo do trabalho, uns engolindo enormes pedaços de ovo de gema mole, outros só fazendo hora numa mesa de canto suja e vazia. Eu mesmo me sentei numa dessas, quase na rua, cinza e fria, e fiquei olhando praquele povo em horário de almoço enquanto não era atendido... “que conversa animada, a daquela gente ali... horário de almoço deve ser um alívio danado, sair com os amigos bem no meio do serviço, comer um bifão com fritas, ou um picadinho e depois, bem... ficar assim!” Pensei reparando nuns homens que jogavam palitinho, certamente à beira de pedir uma cerveja, não fosse terça.
    Dai lembrei que eu também estava em horário de almoço. Fiquei um tempo sem trabalhar, mas tinha voltado, e por ali, na mesma rua do bar da minha primeira mocidade, onde bebia Itaipava por três reais o casco, fumando L&M azul em ambiente fechado sem medo do governo... Seis da tarde, o dono abria um baralho – começava o truco, que ia até a 1 da matina, já que era um bar de família. O próprio Jair, moreno risonho, boa gente e ladrão inveterado no jogo,  até trazia a mulher e o filhinho, quando nasceu. Esses velhos fregueses não tinham nada com os de agora  - vinham no lazer, moravam perto, não era só pelo PF de $5,00. Nenhum engravatado... aliás, antigamente, onde estes daí estavam, ficava a mesa do bilhar – ué, cadê ela? Poxa, tiraram! Justo a mesa...
   E o dono, minha dupla de sempre, com certeza já nem se lembrava mais de mim... “Ehn, que sofrimento!” suspirei. Melhor era mesmo comer logo, mas não tinha achado o garçon ainda. Coitados! A casa estava cheinha, e pelo jeito tinha pouca gente trabalhando. Dei um sinal pro além, e funcionou: veio um rapaz. “Ah, é claro” entendi ao olhar o sujeito que se prestava a anotar meu pedido “é por isso, ele é novo aqui, nem conhecia, não é do meu tempo não...”
- Ô amigo, cê me traz um PF desses ai – apontei pra lousa na porta – uma coca com limão e... vem cá, esse prato aí, vem com batata?
   Não vinha, daí pedi pra que trouxesse uma porção por fora, que ele foi buscar na cozinha que se espremia no fundo, rente ao balcão. Lá era onde trabalhava a Jael, mulher dono, o velho Emil... que, aliás, nem tinha visto ainda, até que ouvi a voz familiar discutindo no balcão. Até acenei empolgado, na esperança que me reconhecesse, mas ele estava tão entretido com um problema que nem me deu atenção.
- É isso mesmo! Eu te devolvi vinte já, daí agora falta só cinco...
- Não não, seu Emil, não é assim não. Eu tinha te dado era cinquenta, foi cinquenta que eu te dei...
   E assim seguiram por um bom tempo, o Emil e o sujeito, enquanto eu de minha parte já tinha comido a salada e agora me atirava na porção de batatinha, junto com a carne acebolada. Foi só quando acabei de comer e me levantei pra pagar que a disputa foi resolvida, e o bom Emil já se ocupava de seus negócios no caixa. Já eu, de minha parte, não tinha qualquer esperança de que ele me reconhecesse, mas..
- Com licença, quanto é que fica o meu?
- O seu fica... ô seu Pedro, resolveu aparecer, foi?
   E me perguntou sobre a vida, o que eu andava fazendo – nada, como sempre – com muito interesse, até que falou que era treze reais, uma pechincha. Fiquei felicíssimo que me reconhecesse; poxa, jurava que tinha se esquecido, jurava! Paguei (com uma nota de vinte, e ele me deu o troco certo), e saí para a rua, não sem antes esbarrar com o velho bicheiro, esse sim, ali desde a primeira vez que entrei naquele bar e ainda por lá, na ativa. “Há coisas que realmente não mudam, nunca...” ri saindo pela rua. “E lugares também  - graças a Deus!” E quase dobrava a esquina quando ouvi gritarem meu nome. Era o Emil.
- Ô Pedro, pera aí! Tenho uma coisa pra falar com o senhor!
   Voltei curioso – era uma pendura de quatro anos atrás, $47,75.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Os males do tabaco


   Depois de alguns dias de constipação, nariz entupido e uma sofrida dor de garganta, que passei enfurnado debaixo das cobertas, saí para a rua com a alegria de quem descobre o mundo de novo. Por razões climáticas obscuras aquele era o novembro mais frio que jamais tinha visto – o jornal anunciava desde 1977, mas eu então ainda não era nascido e, portanto, estava absurdado. Não só eu mas também meu corpo, que padeceu com todo o meu ânimo primaveril e, pego de surpresa por uma friaca num modelito de verão, adoeceu demonstrando sua perplexidade.
    Apesar de trazerem certos benefícios (tinha ficado quatro dias sem trabalhar nem fazer nada de útil), essas doenças sempre implicam privações e sacrifício, pra se poder voltar a funcionar normalmente: não tomar coisas frias, não sair de casa, não beber, e, verdadeiro martírio para quem fuma, não fumar.  Não sou um fumante compulsivo, desses dos seus dois maços por dia, mas confesso que não passo muito bem sem ter pelo menos a possibilidade de fumar meu cigarrinho quando o nervosismo aperta, ou quando não tenho nada para fazer. Devo fumar no máximo uns cinco ou seis cigarros por dia, e de tão pouco já achei muitas vezes que poderia passar sem. Tentei aproveitar a doença para parar de fumar de uma vez, o que foi muito promissor enquanto me senti doente. Mas logo que me senti um pouco melhor, bem o suficiente para ir trabalhar, já fui futucar no maço pra ver se tinha sobrado algum cigarro. Não tinha.
    Assim, quando saí na rua para retomar meus compromissos, a primeira coisa que fiz antes de ir ao ponto de ônibus foi justamente passar na banca e comprar um maço de L&M e uma caixa de fósforos, e segurei a vontade para fumar melhor no ponto, esperando o ônibus. Puxei o fiozinho do plástico com verdadeira volúpia, apreciando cada volta em torno do maço azul e branco, rasgando o papel prateado com a unha e arrancando com dois dedos o cigarro que me realizaria. Antes de acender olhei em volta, pra ver para onde lançar a fumaça e se podia fumar sentado: não, não podia, já que no ponto esperavam também mais umas cinco ou seis pessoas, quase todas mulheres de certa idade, e que não tinham cara de fumantes. Parece que ninguém mais fuma nessa cidade! Se precisasse de fogo, estaria ferrado... Aliás senti que uma mulher, um pouco atrás de mim, me olhava com certa desconfiança, com aquele cigarro entre os dedos.
    Mas acendi, dei aquela esplêndida primeira tragada, tão aliviante depois de ficar saudável por tantos dias. E tomei todo o cuidado para não soltar a fumaça na cara de ninguém, virando a cabeça para cima e assoprando com força. Nesse instante bateu um vento, daqueles do contra, e jogou toda a fumaça justamente naquela mulher que me olhava estranho, que tossiu uma tosse significativa e enfática. Entendi a mensagem e, sem me virar para ela, senti a direção do vento e me desloquei para trás dela, de modo que o vento carregasse a fumaça para bem longe.
    Certifiquei-me de que o vento não tinha mudado de direção e, ainda um pouco receoso e envergonhado, arrisquei uma segunda tragada, que foi ainda mais relaxante que a primeira. Isso até o momento de soltar a fumaça, quando a tensão voltou – mas tive certeza do que fazia e soltei-a para o alto, de onde voou para bem longe do ponto. Mesmo assim, foi eu terminar de assoprar que a mulher começou a tossir outra vez. Como, se a fumaça tinha ido tão longe? Recebi aquilo como uma ofensa e resolvi encarar a desocupada. Mal nossos olhos se cruzaram, ela desviou rapidamente, com uma cara esnobe de desentendida, e pôs-se a olhar os ônibus, ainda tossindo baixinho.
    Como tem gente chata neste mundo! Estava incomodada simplesmente porque queria se incomodar. Eu encarei aquilo como birra, e continuei fumando, agora sem nem me preocupar pra onde a fumaça ia. Melhor se fosse na cara dela mesmo. Fazia um friozinho agradável, e eu fui fumando com gosto, e ela,foi tossindo cada vez mais alto, de um jeito cada vez mais forçado e desrespeitoso, até que finalmente o cigarro acabou. Ainda assim ela deu mais umas duas tossidas, antes de perceber que afinal já não tinha razão para isso. 
Passaram-se uns instantes em silêncio. Como o ônibus teimava em não chegar, fui me sentar no banco sob o coberto, do lado da tal da mulher. Sentei-me e me enrolei no casaco, afundando as mãos nos bolsos. Ainda tinha umas pastilhas, e pus-me a chupar uma, distraído. Mas a mulher, talvez porque, como qualquer fumante, eu estivesse cheirando a cigarro, resolveu voltar a tossir, agora baixinho, uma tosse abafada e com uma discrição irônica. Não sei por que, agora aquilo começava a me irritar de verdade, eu começava a me sentir ofendido, mais e mais a cada tosse. É difícil entender o que leva as pessoas a cometerem essas grosserias e indelicadezas. E eu nem estava fedendo tanto assim! Mas ela tossia como se eu tivesse fumado um charuto, como se eu fosse um cinzeiro ambulante ou um cigarro em forma de gente.
Mordi a pastilha com ódio e levantei para olhar os ônibus, seria o meu aquele? Não, não era... e ao voltar: coff, coff, coff, hum. Decidi encará-la, mas ela logo desviou o olhar, com aquela cara esnobe de desentendida, e mal eu virei o olho pra rua e ela voltou a tossir. Cassete, por que ela simplesmente não se levantava e se sentava em outro canto? Não, não levantaria. Já à beira de cometer uma calamidade em via pública, respirei fundo, acalmei-me e, enfiando as mãos no bolso, senti novamente o envelope de pastilhas. Desenterrei um sorriso das minhas melhores lembranças e, afetando a voz, resolvi me vingar.
- Senhora, com licença... sabe, eu, eu estive doente esses dias. Tempo louco esse, ein?
Ela nem respondeu, só me olhando sem entender.
- Tive febre, tosse, essas coisas... ruim né?
Ainda nada.
- Vi que a senhora está tossindo feito, feito... feito uma porca velha, sabe?, não me leve a mal. A senhora aceitaria uma pastilha valda? É de laranja.
E estendi o pacotinho com um sorriso enorme, talvez o maior sorriso que já fiz para alguém. Ela me olhou absurdada, levantou meio sem jeito e fez sinal a um ônibus que passava. Confesso ter minhas dúvidas se era de fato o ônibus de que precisava. Ainda murmurou alguma coisa, que talvez se referisse à minha mãe, e subiu, sem nem tossir. E eu, vendo que tinha ficado sozinho no banco, tirei com calmamente um cigarro do maço e fiquei fumando junto com a pastilha, enquanto o ônibus não chegava.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Sentido da Vida


Voltando para casa do serviço, enquanto cantarolava um samba antigo e atravessava a Benedito Calixto, fui abordado por uma garota de, no máximo, uns 16, 17 anos, que veio com o papo mais fora de propósito que poderia acontecer:
- Boa noite, senhor! Nós fazemos parte de um coletivo de jovens chamado (não me lembro o nome), e fazemos um trabalho de pesquisa e busca sobre questões relevantes como: de onde viemos, para onde vamos e para que somos. O senhor gostaria de assistir uma apresentação?
Eu fiquei atônito: era a primeira vez na minha vida que, numa terça-feira normal, alguém me aparecia com tantas respostas. Se fosse sexta, eu talvez aceitasse, mas...
- Ô querida, muito obrigado, mas... hoje não vai dar não, eu tenho aula ainda hoje, mas vocês estão sempre por aqui, não é não? – Já tinha reparado há algum tempo nuns painéis e lousas, dispostos na praça de vez em quando, como que numa verdadeira aula em praça pública. Por educação, quis parecer interessado; mesmo com ela me chamando de senhor, coisa que eu detesto.
- Sim, estamos sim. A nossa sede fica bem ali – e apontou o outro lado da praça – o senhor gostaria de agendar uma apresentação? A gente poderia...
- Não, não, querida, agradeço muito, mas não tenho como agendar um compromisso agora. De qualquer forma eu moro logo ali – e apontei a Teodoro Sampaio – e qualquer dia eu passo com mais calma.
Sabia que estava mentindo, mas na hora era o único jeito de me livrar daquela moça com aquela proposta tão generosa. Até simpática ela, coitada, mas não estava com a menor paciência: hoje em dia todo mundo sabe de onde vai, para onde vem, e... essas coisas; quem não sabe, inventa, e já começa a sair por aí pregando pelos quatro cantos o que descobriu. Vide os evangélicos. E eu não sou exceção, tenho lá minhas crenças, só não tenho é tempo pra ficar ouvindo as dos outros.
Como passo todos os dias pela praça, seja pelo almoço, seja pelo trabalho, era de se esperar que eu ainda me encontrasse algumas vezes com aquele  que se revelou um amplo movimento existencial. E não deu outra: quarta, quinta, na sexta não passei por lá, mas na segunda, na terça de novo... deviam ser uns quatro ou cinco jovens empenhados naquela justa causa, e todo dia, quando eu voltava do trabalho, dois deles me abordavam com o mesmo papo... e me chamando de senhor, coisa que eu detesto:
- Boa noite, senhor! Gostaria de saber a resposta para algumas questões relevantes como para onde vamos, de onde viemos e para que somos...?
E como eu sempre soube que ia pra casa, vinha do serviço e estava ali perdendo tempo, na oitava apresentação que me ofereceram, num péssimo dia, eu finalmente perdi a paciência:
- Escuta aqui, meu rapaz, eu passo aqui todo santo dia e vocês me vêm sempre com essa mesma história? Caramba! Já falei que não tenho tempo, que não posso e... e... sabe do quê? Tá vendo aquela igreja ali, do outro lado? Você sabe o que é aquilo? Aquilo ali é a tal da resposta, a Igreja Católica, é pra lá que viemos e... tá vendo? Eu vou à missa todo domingo, e vocês têm a arrogância de vir me dizer pra onde eu vou? E tem mais, eu..
Daí citei o nome de todos os filósofos que já li e que ainda não li, e depois virei as costas e segui meu caminho. Não demorou muito pro arrependimento bater: tinha descarregado a raiva de um dia frustrado numa pessoa que só queria dividir boas novas, dar um sentido àquilo tudo, àquele vazio... talvez até melhorasse meu dia! Sem contar que eu havia mentido feito um louco: nunca fui nem batizado, embora até frequentasse a igreja de tempos em tempos... fazia mais de dois meses que não passava perto de uma missa. Me dizia católico, mas na verdade não passava de um sujeito descrente, cético, perdido. Talvez até fosse ateu.
- Não, isso não!  - me revoltei, ao chegar nesse ponto do raciocínio – pelo menos em Deus eu acredito. Acredito sim.
E pra tirar a prova, resolvi passar na Igreja e assistir a missa das oito, que ainda dava tempo.  Atravessei a praça meio que correndo, subi a escadaria e vislumbrei o espetáculo que vinha pelas portas: a igreja que, apesar de ter néons por fora, era de 1920, muito bem pintada por dentro e tinha missas tão singelas, resolveu adotar novos métodos de conversão, e para tanto tinha contratado uma banda de góspel com guitarra, baixo, bateria e teclado, que cantava “Glória a Deus” num pentacórdio infernal.
Se eu tinha qualquer tipo de fé, foi ali que ela acabou de vez.
Meio desolado, segui chutando pedras até a praça, de novo. Mas lá já não havia ninguém, nem o coletivo pelo Sentido da Vida, nem os policiais, nem a banca de revista, nem os passantes de sempre. Só tinha sobrado mesmo o manco vendedor de zona Azul, e um velho que dormitava no banco do lado oposto ao que eu me sentei, sob a luz amarela do poste. Ouviam-se os carros, meu isqueiro acendendo um cigarro, e só.
- Pois é – suspirei, olhando a cena – só nós sobramos, meus amigos... e de onde viemos? – Sabia que o vendedor de zona azul ficava lá o dia inteiro, e o velho... bem, talvez nem ele soubesse. -  E afinal, de que importa, se acabamos todos aqui, nessa mesma praça? – A conclusão me soou inteligente – Talvez isso já seja alguma coisa: onde estamos? Resposta: na praça. Eu sei que vim da igreja, e antes, da praça, e do trabalho também... e de casa. E de fora, o que será de nós amanhã? Quer dizer... o que será de mim? Sei que vou trabalhar, mas não é só isso. Nessa vida pode acontecer qualquer coisa... e eu também, antes de mais nada, vou acordar, me vestir, arrumar as coisas e tomar café... antes ainda! Vou voltar para casa, tomar um banho e... poxa, comer alguma coisa!
E já estava na hora: a fome me bateu com tudo, não tinha comido nada desde o almoço. A ideia me animou bastante: logo apaguei o cigarro, me levantei, e subi calmamente a Teodoro Sampaio sentido Hospital das Clínicas, pensando no que tinha em casa para comer, ou se ainda precisava parar na padaria.

domingo, 31 de julho de 2011

Chega de Saudade


“Rua Cônego Eugênio 1034, um sujeito andando de sapato, matutando sobre o quê ficou pra trás. Lembro do tempo feliz, ai que saudade, Pinheiros era só felicidade era como se a especulação... ah não, que coisa horrível!
            Risquei os parágrafos escritos com ódio profundo: não era nada, nada daquilo que eu queria para um texto, muito menos da profundidade e expressividade que esperava dele. Escrever não é qualquer tolice, pensava, não posso sair por aí copiando a cariocada numa melancolia pronta... até porque o espírito era outro, apesar de que a melancolia cairia muito bem, no momento certo.
            Peguei outra folha, e quase esbocei fumar... mas desisti – não ia ajudar de jeito nenhum, o barato era o papel e a caneta, numa total servidão às experiências que tinha vivinhas no peito, mas não saíam com a elegância que eu precisava. Daí, entre escrever qualquer tralha, só pra mostrar para o grupo e ficar bem na fita, ou simplesmente chegar de mãos abanando e sorrir um “ esqueci! fica pra próxima”, talvez eu preferisse a segunda opção, não pela responsabilidade, mas pelo simples amor-próprio.
            Era imprescindível expressar tudo aquilo que foi vivido, e que era vivido até hoje – relevância e atualidade do tema, a vida de um bairro, isso é, se ainda vivia, o que se passava por ele, etc. Mas do jeito que a coisa andava, não conseguia nem me expressar de uma forma decente, e não porque faltasse conteúdo, já que morava naquele mesmo pedaço de terra fazia bem uns 20 anos, mas pela falta de referência que me inundava. Criar uma própria, então, estava totalmente fora do meu universo mental, atribulado com novos empregos e com o peso do mundo nos ônibus, digo, nos ombros, o que não é em si um problema: sempre tive a absoluta noção de que não sou o primeiro homem no mundo, nem no Brasil e muito menos em São Paulo... pelo contrário, sou um dos últimos, o que sempre constatei com alegria. Ora, coitado de quem, antes de ler os Mários de Andrade, os Fernandos Sabino, e sem ouvir um Adoniran ou um Vanzollini sequer, resolveu lá escrevinhar algumas linhas sobre São Paulo! Nunca pude entender quem se queixa de que já fizeram tudo – ora, melhor! Não precisamos perder mais tempo.
            Bem, não podia perder mais tempo: era nessa tarde, ou pra semanas depois, o que seria um erro – o problema me perseguiria fatalmente. Largando o papel, me pus a fuçar todo o material levantado de antemão, crônicas, contos, poesias, letras de sambas, discos de sambas, sambas em si, papeletes que juntava nos bolsos e gavetas, páginas avulsas de jornais de bairro, ideias esboçadas até que...
            - Nada! Suspirei indignado... - Nada que sirva, nenhum motivinho, bando de incompetentes – me virei para a pilha de livros e materiais, mas logo me arrependi e me desculpei baixinho.
            O negócio era mesmo fumar.
            Mas nem isso se podia fazer sem nenhuma perda, tinha que me deslocar pro quintal – só daí acendi e me pus a pensar, de novo. Como era chato ter que fumar longe do quarto! Na minha velha casa é que era esquema... uma ampla varanda saindo direto do meu quarto para a linda Cônego Eugênio, rua de minha infância, tão maravilhosa que... bem, a quem eu engano? Minha varanda dos anos 30, sobreloja de uma floricultura heptagenária, dava direto para uma aberração de prédio-shopping, meio cinza, meio amarelo, nada bonito... mas pelo menos dava pra fumar do lado da escrivaninha, vai que pinta alguma ideia brilhante e repentina! Aliás aquela escrivaninha, quanta coisa não me vinha nela, naquele tempo de colégio... fazia tudo obrigado, claro, e dramatizando também, mas tudo parecia ter muito sangue, muita vida! Quando a relojoaria fechou, eu até escrevi uma crônica pra aula de...
            Foi uma luz. Tudo o que eu sempre precisei devia estar naquele texto do viço dos meus 16 anos, quer dizer, pelo menos na minha desesperada memória. E o melhor de tudo é que era meu, ou seja, seria praticamente um diálogo comigo mesmo em dois momentos diferentes da vida – melhor do que o tradicional serão com os mortos ao qual sou já bem acostumado. O que restava agora era só achar o diabo do texto, o que julguei ser tarefa fácil, mas – qual! -  não se encontrava em nenhum dos locais plausíveis, ou mesmos possíveis de estar. Não via esse texto, bem como seus irmãozinhos de geração, desde a fatídica mudança, o que era alarmante... e se não achasse? Afastei a ideia junto com uma pilha de cadernos e pastas antigas, num angustiante espirro alérgico – mas ali também não estava nada... a coisa se complicava cada vez mais, e a cada nova gaveta ou arquivo que revirava, o desespero do fim da falsa esperança ficava mais agudo, até porque chegou um momento em que todos os lugares verdadeiramente possíveis e plausíveis já tinham sido revistados, só restando, então, os lugares improváveis, que eu começava a revirar já sem muita fé e com uma esperança de puro procedimento.
            Finalmente, depois de revirar a gaveta onde guardava só receitas médicas e derivados, olhar debaixo da cama e checar disco por disco a minha coleção dos Beatles, me dei por vencido: sumiu que desapareceu, e ponto! Não tinha outro jeito senão me virar com ideias novas, pois a minha velha produção não colaboraria nessa... e mesmo pr`além disso, a coisa foi ganhando proporções sentimentais, afinal de contas, foi um dos primeiros textos que escrevi de verdade em minha vida, E eu me lembrava dele como muito interessante, uma abordagem sobre o bairro daquelas que até hoje me acompanha e que, no momento de repensar essa história toda e escrever um novo texto, me daria uma puta força – mas não, ele não ajudaria, simplesmente porque não estava lá.
            E mais ainda: acabou atrapalhando, pois aquilo me abateu de verdade, apegado como sou a tudo que é velho e que passou há certo tempo, ainda mais se tratando da minha vida. Já não conseguia pensar direito no texto que tinha que escrever, e fui meio que assaltado pela melancolia e pela ansiedade. Tudo que restava era dar uma clássica parada, a pretexto de algo, para espairar, juntar novas forças e, se possível, abstrair a história da crônica.
            O pretexto, no caso, foi uma coca-cola com um cigarrinho, o que ainda me daria, de quebra, um pequeno passeio até o boteco na Teodoro Sampaio, numa tarde até que bonita de primavera, ainda mais na minha arborizada e passarinhada rua Cristiano Viana, que, embora não tão bela quanto a Cônego Eugênio Leite, com o portão do cemitério São Paulo e com o Colégio Sta. Luzia, também tem lá seu charme nos sobrados que se sucedem, careadamente, entremeados por grotescos edifícios neoclássicos. Naquela caminhada reparei em um lindo casarão em particular, vizinho à minha vila, que, tendo morrido o velhíssimo e carnavalesco dono, estava à venda e e pelo jeito já estava vendido, pois a placa tinha sumido. Tal perspectiva era apavorante: o que fariam ali, outro prédio grotesco, talvez? Ou um estacionamento, na rua até que se precisava de um, ou então simplesmente deixariam a casa mofando, lacrada como estava, esperando o preço da terra subir pra vender mais caro.
            Nessas reflexões, cheguei ao bar e à metade da coca-cola, até que me voltou à cabeça a tragédia da crônica, enquanto tratava de acender o cigarro, como que desdobrando naturalmente o problema da mudança e, no caso da minha em particular, o ódio de perder coisas no meio. Cacete, se eu não achava o diabo da crônica, o que restava era tentar lembrar dela, o que eu até conseguia, só que bem vagamente. O boteco em que estava, sujo, barulhento e deliciosamente mal frequentado,  me ajudou bastante, pois a crônica começava exatamente num bar desses, só que na Vital Brasil, e... bem, daí o que mais? O estilo era certamente brilhante, lembro de levar um legítimo A com louvor e de, mesmo sem essa vaidade besta, gostar muito dela – certamente levava muito sangue, tinha posto muita coisa que pensava nela, e a narrativa era encadeada com maestria, ligada intimamente ao espaço. Provavelmente uma verdadeira obra prima que se perdeu nessas adversidades da vida moderna, meu Deus... até as personagens eram muito boas, como uma mesa de quatro animados amigos me lembrou: éramos em quatro, ou eu e mais quatro, nada além disso... e era uma daquelas típicas sexta-feiras que vivi durante três anos, em que, saindo direto do colégio pro bar mais próximo, gastávamos horas a fio pensando onde íamos acabar a nossa tarde, isso depois da décima ou nona cerveja. O destino era esse: Teodoro Sampaio, em geral, já que a maioria morava pelo pobre bairro de Pinheiros mesmo... rapaz, era um caminho um pouco desagradável, mas mesmo assim a gente gostava! Depois de atravessar a ponte, seguíamos toooooda a Eusébio Matoso até a Rebouças, tudo isso a pé, até chegar na Pedroso de Morais, de onde subíamos pela Artur de Azevedo, parando no primeiro bilhar que pintasse.
            - Só moleque mesmo, viu! – suspirei olhando a rua, onde um carro businava ensandecido, provavelmente descontando seus problemas domésticos. Aliás, eu também tinha os meus: era pagar e terminar de escrever, portanto tratei de juntar meus trocados até ter certeza de que juntos formavam 2 reais -  e ri, com gosto, lembrando das coisas até chegar em casa, onde o drama me esperava.
            Mas não tinha jeito: respirei fundo e escrevi, mas muito, e de um jeito que, no fim, adorei, e esqueci aquela palhaçada da crônica velha. Nunca precisaria dela para escrever uma nova... e, vai ver, nem era tão boa assim! Eu tinha só dezesseis anos.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Nota de leitura

     Ainda esses dias, terminei de ler um excelente livro do mineiro Fernando Sabino, que talvez seja um clássico e só eu não soubesse. Mas mesmo assim vale a pena comentá-lo. “O encontro marcado”, de 1956.
      Li em alguns cantos que o livro é um livro datado – e definia-se datado como algo que morria com o seu tempo, algo assim, ou que só então fazia sentido. O que nem seria um absurdo, já que o livro acompanha os conturbados anos que vão de 1930 até 1950, ingenuamente chamados de “era Vargas”; mas menos no plano político que na vivência de Belo Horizonte, uma das mais modernas capitais de então. Mas só seria se fosse: os conflitos de geração, por assim dizer, ligados a experiência da época, não poderiam deixar de lado toda uma momento da história do Brasil, e de seu centro político e intelectual. O período é fundamental para os dias de hoje: a fundação de um estado-nação moderno, Brasília, 1964, etc. etc.
     Desde o começo, da infância da personagem, vi alguma coisa de “Retrato do artista quando jovem” do Joyce. Tem qualquer coisa de romance de formação de um artista, ou funcionário público, no Sul dos anos 50. Desde as fabulações de jovem, flanando pelas ruas de uma capital de província, até o Rio de Janeiro, onde o livro parece acompanhar poesias de Carlos Drummond. A época que viu o suicídio de Vargas e a construção de Brasília foi marcada por certa euforia, em parte pela fartura do pós-guerra, mas também devido ao progressismo característico do estado de Vargas. Há um certo tempo, um velhinho que conheci num bar, e que quando a coisa estava pegando fogo era bem entrosado na política, até disse que a época que nós vivemos, neste sentido de euforia e crença na democracia, é bem parecida com os anos 50.
     Neste sentido, o livro é sim um tanto burguês, como entenderem o termo. Mas é o burguês em crise, a crise que estoura nos anos 60. E também a visão de um artista, duma época que viu grandes façanhas em matéria de problematização de seu tempo, e mesmo na imortal arte de pensar na vida, coisa que os mineiros parecem fazer tão bem. Ótima leitura, com muito ainda a nos dizer.

domingo, 10 de julho de 2011

É preciso escrever

Digitei essas palavras para lembrar a mim mesmo, pois se não esqueço. Esqueço? Acho que é mais uma coisa de me atormentar com porquês... ou no caso, quem.
Digo: "é preciso escrever". Quem é preciso?
R. Português é engraçado, par exemple...
Je dis: "Il faut écrire". Qui faut?
R. il.

Os franceses se contentam com muito pouco, mas sempre resta o “por quê?”. Por quê se atormentar com a escrita, com as palavras em geral, hoje em dia? Pode-se muitíssimo bem viver sem ela, e até de um jeito mais fácil: escola, trabalho, esposa, netos, morte. Um abraço.
Quis gerar efeito, nenhuma vida é simples, fujo do tema. Por quê? Esses dias, assisti uma palestra de professores russos, falando sobre a literatura russa atual, como ela vai, se é que vai, etc. E parece que a coisa não vai lá muito bem, já faz uns anos que decretam e redecretam a “morte da literatura artística” (“literatura” sozinha em russo é até bula de remédio), e que as melhores produções literárias são justamente aquelas que querem loucamente assassinar, enterrar e depois chorar a literatura. A isso, a professora Aurora Bernardini respondeu, com uma graça muito característica, citando uma carta de Gógol a Púshkin, ambos grandes escritores russos do começo do século XIX: “mande-me uma anedota, somente uma anedotinha, para que eu possa escrever um conto”.
Nessas, Gógol não escreveu um conto, mas um romance inteiro, e dos bons.
Saí dessa palestra um tanto intrigado. Ora, eu mesmo, e alguns tantos amigos, temos lá uns devaneios de viver da escrita, mesmo não sabendo bem o porquê. E se a peste, que decretaram na Rússia, venha se alastrando até aqui, ou se já tiver se alastrado? Neste caso, seria bom mudar de sonhos logo, a vida não é tão longa assim. Só nesse último mês mandei três textos para três concursos, duas poesias e uma crônica. Se desistisse logo, ganharia tempo.
E ainda tem outra pergunta: para quem? Dessa eu não conheço uma língua que se esquive. Vejo vários desses escritores, quarentões em sua maioria, fazendo lá seus lançamentos em livrarias paulistas, falando com propriedade, bolando novelas... em geral, vão família e amigos, e uns tantos leitores de literatura contemporânea desocupados, conheço até uma senhora que não perde um lançamento de livro, é conhecida por todos os garçons. É para essas pessoas que se escreveria?
Por outro lado, temos aqui em nosso país a tradição, muito interessante, de diversos escritores que fizeram maravilhas em jornais, através da crônica. E o melhor de tudo é que, esses dias, me mostraram um cronista firmeza que ainda está se defendendo na praça, o tal do Antônio Prata. Eu, que me acostumei a ler só defunto, me impressionei: o cara escreve muito bem, e mais, num grande meio de divulgação. Tudo bem que o lavrador nos cabrobrós do Piauí certamente vai morrer sem ler o tal do Antônio Prata, mas tudo depende dos objetivos do escritor: País? Brasil. Estado? SP – capital. Nessas, tudo legal, o cara escreveu uma crônica, brilhante para mim que vivo neste mesmo pequeno planeta, de como passou do email – espécie de cigarro da internet – ao twitter – indubitavelmente o crack.
Está claro como o tema é burguês (sem que isso seja pejorativo, por Deus), mas reparem: colhido na besteira do cotidiano (parafraseando a inscrição de um disco do Noel da coleção Abril), aquela que todos vivem sonhando um dia poder largar, o cotidiano da cidade grande – Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, etc. E daí eu me lembro de Manuel Bandeira, com as suas saborosas crônicas, compiladas no livro “Crônicas da província do Brasil”, da Cosacnaify. O estilo é para ser lido em voz alta – Manuel provavelmente conversava tardes inteiras com o porteiro – e os temas! são impressionantes, pela sensibilidade do autor em pegar, ou melhor, recriar os motivos do cotidiano. A morte de um velho professor, uma rua antiga e escondida no Recife, os pivetes arruaceiros do bairro onde morava: tudo isso é fantasiado (discussão longa! “Todo cronista é mentiroso”) de um tal jeito que podemos esperar, depois da leitura, que essas coisas realmente aconteçam.
Daí me lembro da pena de morte da literatura, ora, faltam motivos para se escrever sobre? Paulistas de todo o Brasil, vejam a cidade que habitam, e depois tomemos uma cerveja. Anedotas não faltam, a cidade muda rapidamente e cada cidadão certamente tem muitíssimas histórias para contar. Trato aqui, claro, só da crônica, gênero privilegiado para a divulgação no jornal, ou seja, para ser lido e de fato ter algum efeito cotidiano na vida das pessoas, mas quem quiser fazer contos, ora!, vivemos num grande absurdo, basta ter frieza e caneta, apesar de que eu mesmo escrevo no meu laptop, e não com pena ou numa elegante máquina de escrever. Mas escrevo mesmo assim, para me lembrar de que escrever crônicas é preciso, e que o velho Hegel já há 200 anos pensava no tal do fim da arte.
Quanto aos poetas, a coisa é ainda mais fácil: enquanto houver lua, mulher e morte...

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Naquele tempo

Já não se fazem mais bares como antigamente, isso é fato. Quer dizer, não que eu tenha mais de cinquenta anos, nem que eu tenha conhecido lá em minha vida muitos e muitos bares, mas... me refiro nesse antigamente a simples três anos, nada mais do que três – período curto, de fato, mas no qual assisti as noites de sexta e de sábado (e umas tantas tardes esporádicas) perderem progressivamente toda a sua graça.
Ainda há bares por São Paulo a fora, mas fecham cedo, são caros, mal frequentados, mal decorados ou simplesmente são absolutamente sem graça. Pode ser que tudo isso seja um envelhecimento precoce, mas se for, é de agora, e nesse ano não distante de 2007 existiam, na rua Fradique Coutinho, dois bares maravilhosos – “O Cotidiano – Bar e Restaurante”, estabelecimento relativamente novo mas com ares de antigo; e o “Gardenburguer”, que se perguntarem a alguém com esse nome receberão só uma cara de tacho, pois era chamado só de “Bar do Elvis”.
O nome se explica: não é que algum dos donos, irmãos de 60 e 70 anos, se chamasse Elvis, mas Vavá e Joca eram fãs do Rei, e tinham seu estreito bar todo decorado com fotos, discos, cartazes, bem como sempre tinha um filme da estrela passando. E só por um milagre é que tudo isso cabia: o bar consistia na parte térrea de um predinho de dois andares, com um balcão comprido e apertado, rente ao qual só passava uma pessoa sóbria de cada vez, e até umas três embriagadas de bom humor, já que no fundo cabiam umas mesas e mais pessoas.
Não tinha bilhar, não tinha lá muitas mulheres bonitas, mas aquele bar era tudo de bom. A começar pelo próprio dono, Vavá, um velhinho já bem velhinho, que andava arrastando as chinelas por conta da artrite, mas que sempre servia muito bem e contava histórias engraçadíssimas, como certa vez, numa noitada boa com um grande companheiro
- Mas o Vavá, me diz – e dei um gole do Dreher generosamente servido num copo americano – faz quantos anos que vocês têm esse bar aqui?
- Pedrão, eu abri esse bar aqui, olha, eu tinha era uns... 20 anos? Então foi... 54, isso mesmo, não foi não Joca?
O outro, senhor taciturno sempre chegado a piadas, de olhos azuis escondidos debaixo de um eterno boné, mais moço que Washington, virou pra ele e murmurou um “deve ser”. E eu, já meio que embriagado, emendei.
- Poxa, o senhor é de 34 então!
Ao que se seguiram uns murmurinhos entre os companheiros. Mas o velho riu
- É, exatamente! Mas sabe, tenho os meus 70 e tantos anos, e trabalho nesse ramos já faz 50 anos. Dizem que a bebida estraga a gente, mas eu estou é conservado em álcool!
E muitos risos, claro, enquanto “Jail House Rock” tocava no fundo. Se não me engano, nessa noite, um conhaque chamando o outro, tomei um pileque memorável, vomitei na Teodoro Sampaio às 9 e meia da noite e fui para a cama às 10.
Também nessa noite meu amigo Paraíba, rapaz afeminado mas todo metido a galã, foi ao banheiro com uma amiga nossa, pra levar um típico papo de menina, o que, claro, não podia deixar de chamar a atenção do, embora agitado, pequeno bar. Mas saindo do banheiro, em respeito àquele senhor tão amigo, já foi se desculpando
- Diga Pará!
- O Vavá, eu fui no banheiro com ela lá, mas não fiz nada não, viu?
- Ah, não, tudo bem. É porque se fosse eu, tinha feito!
E era assim. Mesmo na nossa incorrigível molecagem, éramos muito bem recebidos e servidos, no que passamos meses a fio frequentando, talvez até um ano. Mesmo quando meu pai, sujeito bom mas terrivelmente autoritário, descobriu que eu andava frequentando semelhante ambiente, e foi lá tirar satisfações e fazer meia dúzia de ameaças, não pegou nada. Conversei com o velho, que falou que concordava com meu pai, mas que mesmo assim estava tudo certo: era freguês e amigo, e eu cuidando pra que o velho não fizesse nada, tinha meu conhaque garantido. O pior mesmo foi quando surgiram uns boatos da venda do bar, que era alugado, para a construção de um duplex – o que nos deu um terrível desespero. Fui tirar a história a limpo, e não deu outra:
- Isso é mal agourismo do Joca, mentira. Os caras não vão conseguir isso aqui da gente tão fácil... tenho os meus direitos. E o doutor aqui – apontou para um senhor vestido de forma terrivelmente elegante, em frente a uma bebida vermelha, creio que rabo de galo – é um advogado sabido, tá cuidando de tudo aqui pra gente, não vai ter nada de prédio aqui não.
E de fato, não teve - o predinho está lá até hoje, pintado e reformado, é verdade, mas está lá. O que mudou foi o governo – veio o excelentíssimo sr. Kassab, veio o Psiu, e o bar que ficava até as tantas da madrugada começou a fechar mais cedo. O bar seguia bem popular, e era a pedida certa de toda noite farrista e a toa. Como era bom aquilo! Se sentir em casa num bar imundo, mas tão acolhedor e agradável! Era como se houvesse algo na cidade, algo estranho e bonito, e que mesmo que tudo desse errado, ali encontraríamos aconchego e amizade, ouviríamos causos do outro milênio, tão lindo e distante nas nossas cabecinhas juvenis, contaríamos nossos problemas com um copo de Domeq, e no terceiro gole, quando o Vavá recolhesse o copo, já teríamos sacado que não tinha problema nenhum, e que era isso mesmo.
E é isso mesmo – essa cidade de São Paulo é terrível, pois o que dá, o que descobrimos numa rua escondida entre os carros, e fazemos daquilo parte de nossa casa, mal passa um mês e nos é tirado sobre qualquer pretexto – um prédio, uma avenida, um metrô, uma doença. Exatamente, uma doença veio e levou o nosso querido Washington, a artrite chegou a níveis insuportáveis, e ele teve de deixar o bar, indo depois inclusive para o hospital. O Joca ainda cuidou por um tempo, mas... sem o irmão a coisa ficou difícil. Até que certo dia, indo rumo ao bar tão certo de nossas noites, descobrimos que estava fechado, não por uma noite só, como julgamos no dia, mas para sempre, como constatamos depois de semanas de tentativas desesperadas. Ainda depois alguém encontrou com o Joca – estava deprimido, e procurando emprego em algum canto. Vavá faleceria alguns meses depois... e na pequena porta do bar, dias depois, surgiu um extenso enorme, escrito: “Elvis não Morreu”. Mas talvez tenha morrido a noite paulista, mesmo com o Cotidiano, bar visinho, onde passamos a jogar truco... mas isso talvez seja outra crônica.