Tão difícil que é se entender, meu caro
anjo, e tão incomunicável que é o pensamento, até mesmo entre pessoas que se
amam!
C.
Baudelaire, "Os olhos dos pobres"
Saímos do espetáculo de braços
colados, mãos fundidas, respirando o mesmo ar nas exatas mesmas pulsações e ritmos.
Se o espetáculo era bom, se a atuação convencia, se o enredo era digno – me
perguntassem sobre qualquer desses assuntos, presumidamente nítidos na mente de
quem sai de um teatro, e eu não teria sequer um palpite. Não tínhamos assistido
nada: de olhos fechados, havíamos assistido, com as mãos, os meandros de nossos
próprios corpos.
Mas num instante, surpresos com o
acender de luzes e o explodir de palmas, ajeitamo-nos como pudemos e começamos
a aplaudir, gritando “bravos” e rindo, de nós mesmos. Apesar de não termos
visto absolutamente nada, nem por isso se poderia dizer que não tivéssemos
gostado. Aliás, muito pelo contrário: estava pessoalmente bastante sentido com
o fim do espetáculo, e foi só a contragosto que, derrotado, puxei a mão de
minha amiga para sairmos, conforme o fluxo de verdadeiros, ou, talvez, supostos
espectadores formava uma fila em direção à porta.
Lá fora tudo estava coberto por
uma noite morna, quase sufocante, com apenas um vento bissexto que trazia,
quando nos lambia, o aroma pesado de suor e fumaça, misturando-se ao hálito de
fritura e álcool que dominava a entrada do teatro. Dos jardins junto à Igreja, até
se esboçava um cheiro de mato, mas antes que nos alcançasse era reprimido pelo
bodum das sacas de lixo, reviradas pelos cantos e postes.
- Vamos beber alguma coisa? –
entressorriu, insinuante, num esplendor de olhos verdes. – A noite está tão
boa...
Como fosse a exata ideia que eu maquinava,
dispensei palavras: dei-lhe um beijo e meu braço, e seguimos a passos lentos,
como que ensaiados, pela calçada estreita e iluminada dos teatros da praça
Roosevelt, colhendo em nosso brilho e alegria a atenção de todos os artistas
noitevagantes pelos bares.
Não podia esconder meu paraíso:
meus olhos voavam alto, mais alto que o Itália ou o Copam, conforme as ideias passeavam
pela paisagem da praça nova, bem frequentada, decorada com gosto e com a imponência
do velho Colégio Caetano de Campos. Com suas árvores monstruosas e vitrais,
parecia medir e conter em si todo o século atravessado pela praça, da República
do Café até a gestão Kassab. Falassem os prédios e eu perguntaria “e que tal, a
nossa cidade? Com quantas formas e nomes você já não viu este lugar, de cartola
e sobrecasaca, com gravatas e andaimes e viadutos, depois indigentes,
travestis... e atores, até chegar nesta praça plana, finalmente ocupada com o
brilho de intelectuais e esqueitistas...? E mais: de todas essas versões do
tempo e do espírito, qual seria a melhor entre todas?...”
Perguntas retóricas, típicas de
uma mente estragada pelos livros. As janelas não falam, e eu tinha a resposta:
aquela era, indubitavelmente, a melhor praça do mundo, em seu instante de glória.
Afinal era por lá que eu e ela
estávamos passeando, e, para qualquer efeito histórico ou cultural, isso mais
do que bastava.
De fora: comparando com o
parnasianismo aristocrático e o progressismo militar, não seriam de fato
melhores dias?
Voltando do trajeto dos anos aos
braços de quem me acompanhava, sugeri que parássemos no que parecia ser o
melhor dos bares, com o melhor dos preços. Cadeiras justapostas, mãos
emaranhadas: ainda murmuramos uma ou outra amenidade, mas já estávamos naquele
lugar, tão fantástico quanto confuso, em que as palavras se tornam inúteis ou
mesmo incômodas. Somente os olhos se entendem, e os nossos passeavam pela
paisagem descortinada sobre a praça e a Viação Leste-Oeste, rolando preguiçosos
pela cerca opressiva de prédios, careada aqui e ali por umas tantas avenidas.
Da nossa mesa, sentíamo-nos pertencendo àquilo
tudo... e transcendíamos. Respirávamos o mesmo ar dos carros, mas em nossa
expiração destilávamos o desprezo; brindávamos e bebíamos como todos, mas em
nossos brindes evocávamos a miséria generalizada da noite, ao que, talvez, só
nós escaparíamos. Nós... a consciência
da penúria paulistana. Daquele abraço e daqueles copos, numa simples conjugação
carnal, espalharíamos a Luz pela cidade inteira, começando pelas outras mesas
do bar, repletas de intelectuais decrépitos e artistas tão medíocres quanto
embriagados.
Aquela praça, reformada e limpa,
ainda havia de ser só nossa.
O bar se abarrotava progressiva e
insuportavelmente, castrando o nosso espaço de contemplação. Tive um arroubo de
cavalheirismo, incendiado por algumas cervejas e outras tantas fantasias
bellépóquicas, e pretextei ir ao banheiro, para poder pagar a conta. Voltando à
mesa, estendi o braço à minha companhia com uma leve inclinação de cabeça,
indicando sem volteios o sentido do convite. Ainda me encarou com seus enormes
olhos verdes, explodindo, por fim, na risada.
- Você é ridículo...
E se agarrou com força ao meu braço.
Subimos calmamente a pequena escadaria
entre os canteiros – rasgou-se o panorama de concreto e verde à nossa frente. Formidável,
essa praça reformada! Nem uma só lembrança daquele estacionamento pichado,
mijado, hostil e avesso ao bom convívio urbano. Só a base da polícia, que ainda
é a mesma: os canteiros são limpos, não faltam bancos nem árvores. O espaço,
antes largado e inabitável, havia sido finalmente ocupado, por amantes,
esqueitistas, famílias, músicos – um convívio harmonioso, e até encantador.
Mas, caindo de nosso deleite
contemplativo, nossos olhares tropeçaram numa massa sólida e convulsa. Destoando
do ambiente de sábado e gozo, atrapalhando a rota dos esqueites e o silêncio voraz
dos abraços, um sujeito em trapos grunhia e se contorcia junto ao chão, no que
os leigos costumam apontar certas apavorantes e irreproduzíveis alucinações
deslanchadas pelo craque, ou pela sede. Falava desordenadamente sobre a mãe, em
cima da árvore, um cachorro, o senhor delegado – “não, eu sou amigo dele! eu
sou!” – expressando em cada gesto um sofrimento incalculável, e incompreensível
para todos nós, esquerdistas sabatinos. Não é que estivesse incomodando alguém,
propriamente, no sentido corpóreo e interindividual do termo incomodar. Mas sua
simples existência ali já era ofensiva, pesada, como se podia ler em alguns
olhares e gestos, e no afastamento assustado de alguns casais.
Quando finalmente se virou para
nós, senti circular em cada veia e em cada nervo uma pena dolorosa: seus olhos,
pretos e avermelhados, cavados em enormes olheiras, por pouco não se reviravam,
e escancaravam um estado de total e confuso desespero. De seu rosto saltavam
feridas e marcas – e estava solto no mundo. Minha alma se rachou entre o êxtase
de antes e a angústia daquele agora: não seria o caso de ajudar? Ligar para um
hospital, um abrigo, algum centro...? Impossível era não fazer nada, fingir alguma
absurda indiferença, o que os grunhidos esporádicos descartavam de antemão. Aflito
e pesado, esqueci que junto ao meu braço e ao meu peito havia outra pessoa, com
suas próprias impressões e desejos. Mas ao ver que um rapaz já se dirigia a um
policial, apontando para o alucinado, me fiei desesperadamente àquela que me
acompanhava, e cuja compreensão de meus anseios já havia chegado ao ponto de
dispensar as palavras, ou de até mesmo adivinhá-las.
Lancei-lhe um olhar angustiado –
e com que alívio encontrei a mesma aflição naquele verde lacrimoso, que se
adiantou à fala com um aperto histérico em minha mão!
- Que horror, coitado...! Vamos
embora, querido?
Ainda meditei um pouco sobre sua
pergunta, enquanto um policial finalmente arrastava aquele desvairado para
longe da praça nova, e do sábado sagrado. Depois de muito pensar acabei sugerindo
a Vila Madalena – lugar onde, pretextando doença, sono ou dor de cabeça,
poderia ir para casa, para não me encontrar nunca mais nem com ela, nem com
seus olhos, nem com a minha própria, estúpida e incompetente consciência.