Já não se fazem mais bares como antigamente, isso é fato. Quer dizer, não que eu tenha mais de cinquenta anos, nem que eu tenha conhecido lá em minha vida muitos e muitos bares, mas... me refiro nesse antigamente a simples três anos, nada mais do que três – período curto, de fato, mas no qual assisti as noites de sexta e de sábado (e umas tantas tardes esporádicas) perderem progressivamente toda a sua graça.
Ainda há bares por São Paulo a fora, mas fecham cedo, são caros, mal frequentados, mal decorados ou simplesmente são absolutamente sem graça. Pode ser que tudo isso seja um envelhecimento precoce, mas se for, é de agora, e nesse ano não distante de 2007 existiam, na rua Fradique Coutinho, dois bares maravilhosos – “O Cotidiano – Bar e Restaurante”, estabelecimento relativamente novo mas com ares de antigo; e o “Gardenburguer”, que se perguntarem a alguém com esse nome receberão só uma cara de tacho, pois era chamado só de “Bar do Elvis”.
O nome se explica: não é que algum dos donos, irmãos de 60 e 70 anos, se chamasse Elvis, mas Vavá e Joca eram fãs do Rei, e tinham seu estreito bar todo decorado com fotos, discos, cartazes, bem como sempre tinha um filme da estrela passando. E só por um milagre é que tudo isso cabia: o bar consistia na parte térrea de um predinho de dois andares, com um balcão comprido e apertado, rente ao qual só passava uma pessoa sóbria de cada vez, e até umas três embriagadas de bom humor, já que no fundo cabiam umas mesas e mais pessoas.
Não tinha bilhar, não tinha lá muitas mulheres bonitas, mas aquele bar era tudo de bom. A começar pelo próprio dono, Vavá, um velhinho já bem velhinho, que andava arrastando as chinelas por conta da artrite, mas que sempre servia muito bem e contava histórias engraçadíssimas, como certa vez, numa noitada boa com um grande companheiro
- Mas o Vavá, me diz – e dei um gole do Dreher generosamente servido num copo americano – faz quantos anos que vocês têm esse bar aqui?
- Pedrão, eu abri esse bar aqui, olha, eu tinha era uns... 20 anos? Então foi... 54, isso mesmo, não foi não Joca?
O outro, senhor taciturno sempre chegado a piadas, de olhos azuis escondidos debaixo de um eterno boné, mais moço que Washington, virou pra ele e murmurou um “deve ser”. E eu, já meio que embriagado, emendei.
- Poxa, o senhor é de 34 então!
Ao que se seguiram uns murmurinhos entre os companheiros. Mas o velho riu
- É, exatamente! Mas sabe, tenho os meus 70 e tantos anos, e trabalho nesse ramos já faz 50 anos. Dizem que a bebida estraga a gente, mas eu estou é conservado em álcool!
E muitos risos, claro, enquanto “Jail House Rock” tocava no fundo. Se não me engano, nessa noite, um conhaque chamando o outro, tomei um pileque memorável, vomitei na Teodoro Sampaio às 9 e meia da noite e fui para a cama às 10.
Também nessa noite meu amigo Paraíba, rapaz afeminado mas todo metido a galã, foi ao banheiro com uma amiga nossa, pra levar um típico papo de menina, o que, claro, não podia deixar de chamar a atenção do, embora agitado, pequeno bar. Mas saindo do banheiro, em respeito àquele senhor tão amigo, já foi se desculpando
- Diga Pará!
- O Vavá, eu fui no banheiro com ela lá, mas não fiz nada não, viu?
- Ah, não, tudo bem. É porque se fosse eu, tinha feito!
E era assim. Mesmo na nossa incorrigível molecagem, éramos muito bem recebidos e servidos, no que passamos meses a fio frequentando, talvez até um ano. Mesmo quando meu pai, sujeito bom mas terrivelmente autoritário, descobriu que eu andava frequentando semelhante ambiente, e foi lá tirar satisfações e fazer meia dúzia de ameaças, não pegou nada. Conversei com o velho, que falou que concordava com meu pai, mas que mesmo assim estava tudo certo: era freguês e amigo, e eu cuidando pra que o velho não fizesse nada, tinha meu conhaque garantido. O pior mesmo foi quando surgiram uns boatos da venda do bar, que era alugado, para a construção de um duplex – o que nos deu um terrível desespero. Fui tirar a história a limpo, e não deu outra:
- Isso é mal agourismo do Joca, mentira. Os caras não vão conseguir isso aqui da gente tão fácil... tenho os meus direitos. E o doutor aqui – apontou para um senhor vestido de forma terrivelmente elegante, em frente a uma bebida vermelha, creio que rabo de galo – é um advogado sabido, tá cuidando de tudo aqui pra gente, não vai ter nada de prédio aqui não.
E de fato, não teve - o predinho está lá até hoje, pintado e reformado, é verdade, mas está lá. O que mudou foi o governo – veio o excelentíssimo sr. Kassab, veio o Psiu, e o bar que ficava até as tantas da madrugada começou a fechar mais cedo. O bar seguia bem popular, e era a pedida certa de toda noite farrista e a toa. Como era bom aquilo! Se sentir em casa num bar imundo, mas tão acolhedor e agradável! Era como se houvesse algo na cidade, algo estranho e bonito, e que mesmo que tudo desse errado, ali encontraríamos aconchego e amizade, ouviríamos causos do outro milênio, tão lindo e distante nas nossas cabecinhas juvenis, contaríamos nossos problemas com um copo de Domeq, e no terceiro gole, quando o Vavá recolhesse o copo, já teríamos sacado que não tinha problema nenhum, e que era isso mesmo.
E é isso mesmo – essa cidade de São Paulo é terrível, pois o que dá, o que descobrimos numa rua escondida entre os carros, e fazemos daquilo parte de nossa casa, mal passa um mês e nos é tirado sobre qualquer pretexto – um prédio, uma avenida, um metrô, uma doença. Exatamente, uma doença veio e levou o nosso querido Washington, a artrite chegou a níveis insuportáveis, e ele teve de deixar o bar, indo depois inclusive para o hospital. O Joca ainda cuidou por um tempo, mas... sem o irmão a coisa ficou difícil. Até que certo dia, indo rumo ao bar tão certo de nossas noites, descobrimos que estava fechado, não por uma noite só, como julgamos no dia, mas para sempre, como constatamos depois de semanas de tentativas desesperadas. Ainda depois alguém encontrou com o Joca – estava deprimido, e procurando emprego em algum canto. Vavá faleceria alguns meses depois... e na pequena porta do bar, dias depois, surgiu um extenso enorme, escrito: “Elvis não Morreu”. Mas talvez tenha morrido a noite paulista, mesmo com o Cotidiano, bar visinho, onde passamos a jogar truco... mas isso talvez seja outra crônica.