Das adversidades da
Música de Concerto em um país de clima subequatorial
Pobre do azarado que, brasileiro, deu para gostar de
música clássica. E não falo da excentricidade, do papel de pedante, e nem da
velhice precoce que a música de concerto via de regra acaba causando... Talvez
pela sua suposta aversão aos nossos planaltos tropicais, mais afeitos ao
batuque que à batuta – falso problema que qualquer Heitor desmentiria –, ou
mesmo, como coaxam por aí certos nostálgicos da República do Café, pela
ignorância incorrigível do Zé Povo; pela razão que for: a infelicidade não é
menor. O acesso é pequeno, o preço, enorme e as dificuldades, aos cachos.
Começo, no diletantismo
permitido a um cronista, pelo problema das orquestras: vivem de baixos
incentivos, e poucas são de repertório – um claro reflexo dos costumes, já que
a rigor a sociedade só produz o que precisa... ainda que, felizmente, sigam
sempre existindo, por este Brasil de meu Deus, inúmeros conjuntos militares,
juvenis, carnavalescos e recreativos, zelando pela música orquestral sem
qualquer petulância. Agora mesmo me lembro da Lira São-joanense, que se
proclama a orquestra mais antiga do Brasil (séc. XVIII), da qual qualquer bom
morador de São João Del Rey falará de peito cheio mesmo que, numa missa na
matriz, dificilmente a tal da orquestra consiga orquestrar alguma coisa. A
profissionalização do artista, ainda que via de regra roube a sua alma, no caso
de um complexo musical com mais de cinquenta instrumentistas não é lá má ideia:
é preciso que sejam organizados, talentosos, bem pagos e, principalmente, estejam
a serviço da população...
Meta distante: talvez pela falta
de uma educação geral propriamente erudita – contraposta à musicalidade quase
inata do brasileiro –, aliada à alergia de povo das supracitadas rãs do café
com leite, o fato é que sala de concerto neste país ainda é sinônimo de
champanhota e pince-nez. Tanto no preço quanto no acesso e na imaginação. Contra
o que alguns programas já estão batalhando, ainda que silenciosamente – lembro-me
agora do Projeto Curumim, e da Sinfônica de Heliópolis, como exemplos. Já o
acesso, pelo menos em São
Paulo, sofre daquela velha ironia, tão amarga quanto tapuia,
de estar ao mesmo tempo à mão de todos e de ninguém: o Municipal, o São Pedro,
o Cultura Artística e a Sala São Paulo ficam bem no Centro, na área de maior
circulação e diversidade social da metrópole, bem servida de metrô, de trem, de
ônibus – e mesmo assim, ficassem essas salas no Shopping Cidade Jardim e o
público seria basicamente o mesmo. Uma situação que o preço da entrada, mesmo
não sendo extraordinariamente absurdo, tem lá a sua parte na manutenção.
Naquela
noite escaldante de novembro, ainda existia a possibilidade de arranjar convite
a dez reais – o saudoso Ingresso da Hora, vendido a dez minutos do começo do espetáculo.
Bastava esperar numa fila e, portanto, chegar meio cedo, pré-requisitos
aparentemente cumpridos conforme eu saltava, empapado de suor, na Duque de
Caxias com a Júlio Prestes, consultando instintivamente o relógio do celular.
- 8:20 ! –
suspirei, repousando os olhos na avenida frenética. As cortinas de aço
entreabertas ainda mostravam frutas podres, cheirando forte no calor da noite;
alguns cabos de rede, azuis e pretos, blusas e camisas; num galpão azul-bebê,
um pastor esbravejava, apocalíptico, a uma plateia abarrotada, e junto à porta
três coreanos pareciam discutir, na sua língua absurda; do outro lado, ao redor
da trincheira farpada da antiga rodoviária, círculos cada vez mais histéricos
se aglomeravam, no coletivismo egoísta do crack: um cenário totalmente dostoievskiano
que se armava para a noite da Luz, conforme eu, entre o fascínio e a pressa,
deslocava os olhos do celular para os ponteiros da torre, atravessando a fila
de táxis que já se espremia, vomitando madames na esquina da Júlio Prestes com
a decadente rua Mauá.
Adentrei
pelos arcos bem policiados da praça, ao som da lataria do Trem Metropolitano. Afobado,
tropecei umas cinco vezes na minha própria sandália, já escorregadia pelo suor,
e quase deixei o pé esquerdo pelo caminho. Só quando pisei firme sobre o estrado
de madeira envernizada, na elegante antessala com a estátua de Eleazar de
Carvalho, foi que me acalmei de fato com o horário: não se tratava de um
concerto trivial, escolhido ao acaso para matar o tempo. Era coisa imperdível, a
5ª sinfonia de Mahler, o judeu convertido à fé católica, o último romântico das
canções de Des Knaben Wunderhorn e o
primeiro moderno da 9ª sinfonia, o modelo para Morte em Veneza no livro de Mann e no filme de Visconti, o
compositor por quem consigo ter a mesma paixão e idolatria que tive, aos 14
anos, pelos Beatles. Aliás só por isso que havia chegado tão cedo, meia hora
antes: normalmente me atraso, quando muito chego em cima da hora. Só aquela
confluência entre paixão desvairada e oportunidade única para me fazer me
adiantar, mesmo assim nem tanto: no subsolo, entre casais respeitáveis e jovens
descolados (entre quem música clássica já está se tornando cool), já se avolumava uma pequena fila. Ao lado conversava um
pequeno grupo de rapazes, simples e até maltrapilhos, com mochilas nas costas e
a tiracolo. Os grandes estojos apoiados no chão denunciavam estudantes de
música, e de fato: logo reconheci um deles.
- Salve! –
me enfiei, feliz da vida por não ter que esperar sozinho.
Cumprimentamo-nos,
e fui apresentado aos desconhecidos.
- Hoje a
coisa vai ser boa... – esfreguei as mãos, ansioso.
- Ah vai! –
concordou, presto, meu amigo, de índole igualmente mahleriana.
- É... meio
longo, né... – suspirou um violinista, ali mais por uma obrigação profissional
do que por amor à arte, adepto que era, claramente, de obras mais ligeiras e
mais palatáveis.
- Ah, que é
isso! – indignou-se o meu amigo mahleriano – Como é que você pode...
E começou
uma daquelas intermináveis conversas de músicos eruditos, às quais mesmo um
amante sincero da arte, como eu, tem poucas chances de participar, seja por
ignorância bruta, seja por falta de paciência. Acabei mais folheando uns
papéis, lendo um folheto sobre o maestro convidado, e por fim, ao constatar um
aumento na fila, interrompendo a apaixonada discussão:
- É bom a
gente se apressar.
Pegaram
suas coisas e nos mobilizamos. Mas no que fomos para o “L” da fila, separado
pelas cordas, meu amigo pisou em falso e, apoiando no meu ombro, quase me
derrubou junto com um violino, não fosse eu me apoiar em uma coluna.
Recomposto, pediu desculpas e constatou:
- Ah, os
cadarços...
Esperei educadamente
que ele os amarrasse, conforme os outros já se adiantavam: se ajoelhou ao meu
lado, entrançou as duas cordinhas meio puídas, e demorou o olhar um pouco sobre
meus pés, admirado. Quando levantou, numa expressão entre riso e desespero, pôs
a mão no meu ombro e disse:
- Bicho...
como é que você vai fazer...?
- Com o
quê? – não entendi.
- Com esse
chinelo... você sabe que...
- Não é
chinelo, é... – entendi numa paulada - Puta merda, não vão me deixar entrar...!
– e bati a mão sonoramente na testa, com um misto de raiva de mim e do mundo. –
Ah, não... porra, e agora, quê que eu faço?
Meu amigo
olhou no relógio, virou para mim num suspiro, e disse
- Chora.
E como a
fila andasse, me lançou um olhar de impotente compaixão, e seguiu para comprar
os ingressos. Bem, e eu...? Voltar pra casa seria avassalador: fazia pelo menos
uns dois meses que eu queria ver aquele concerto, contava os dias, e ter ido
até a Luz para uma broxada daquelas ia ser de morte. Mas de chinelo não iam me
deixar entrar... só se eu...
- Gabriel,
espera. – me adiantei, decidido. – Compra pra mim também
Ele ainda
olhou para as minhas sandálias, mas resolveu não insistir, pegou meu dinheiro e
comprou, sob o olhar de reprovação de alguns que achavam que eu tinha furado
fila. Quando eu peguei meu ingresso e agradeci a caixa, o gorila de terno que
ficava ao lado, com o rádio na mão, percebeu o que eu calçava e já me puxou
pelo ombro:
- Amigo,
com esse chinelo aí você não entra não...
- Chinelo
não, grande, é sandália. E vem cá, que história é essa, de que não entro?
- Norma da
casa – respondeu, seco e importante, como se a norma fosse de Deus, e a tal da casa
fosse dele. – Aqui é lugar de gente decente.
- Ah, então
sandália é indecente?! Desde quando! – era tão absurdo que eu não conseguia
replicar. Mas respirei fundo. – Meu irmão, esse calor...!
- Lá dentro
tem ar condicionado – cortou, já sem paciência, ainda que se visse, no seu
rosto melado de suor, embrulhado num paletó e numa gravata excessivamente
justos, que a sua condição discordava do tal ar condicionado.
Tentei
argumentar mais algumas obviedades, sabendo que não tinha nada a perder, mas o
gorila esgotou a paciência e acabou chamando o gerente, antes de chegar aos
finalmentes da sua tediosa profissão, que tantas aventuras promete, mas que raramente
consegue chegar ao clímax de encher um impertinente de porrada.
- Pois não,
em que posso ajudá-lo? – chegou, todo afetado, um gordinho de óculos, com um
crachá de gerente.
- É o
seguinte, meu caro... – tentei enxergar o nome – ... meu caro Gérson. Gérson,
eu frequento esse lugar já faz um bom tempo; gosto de música clássica, acho a
sala de vocês ótima. Já tenho o convite pra hoje, e esperei como um louco pra
ver esse concerto. Só que com esse calor, eu acabei usando isso daqui...
Apontei
para os meus pés sujos, mas antes que eu pudesse concluir, ele completou.
- ... e agora
não vai poder entrar. – cantarolou, num sorriso de falsa lamúria.
- Então,
isso é um absurdo!
- São
normas, sinto muito.
- Mas...!
- Olha só –
e me puxou para um canto da bilheteria, onde, numa moldura dourada, pendia uma
ficha com letras miúdas e enfáticas –: “É terminantemente proibida a entrada de
pessoas sem camisa, sem... sem calças...? Hum?! Ah, de bermudas, de chinelos...
- Mas são sandálias... –
arrisquei.
- “...de sandálias... ou qualquer
outro calçado que não cubra os pés inteiramente”. Está vendo? É isso aí.
- Mas...
- É, eu sinto muito... – afetou
compaixão. – Mas se você quiser pode encaminhar uma reclamação à diretoria
neste endereço aqui, ó – e me estendeu um cartão. – Daí eles veem.
E, sem nem
um boa-noite, virou de costas e me deixou falando com o vento. Como o segurança
ainda me olhasse feio, desisti de persegui-lo e exigir explicações mais cabais:
a não ser que invadisse a sala, me enfiasse por uma janela ou chamasse o
presidente da república, não iria conseguir entrar naquele concerto, do meu
compositor favorito, que esperei por tanto tempo, por causa da porra da caralha
do chinelo...
- Sandália!
– me corrigi, mentalmente.
Era isso e
ponto. Por causa de um invólucro para os pés, criado certamente na Europa ou em
qualquer lugar bem longe do trópico de Capricórnio, eu, que só de sandália já
morria de calor, não ia poder ouvir música... e qualquer tentativa de elucidação
lógica da relação entre sapatos e concertos estaria condenada, ou ao fracasso,
ou pelo menos à constatação clássica da vitória absoluta do surrealismo na vida
prática no território brasileiro. Sem ânimo para discutir com quem quer que
fosse, já consciente da inutilidade dos apelos, e da fatalidade da derrota,
subi as escadarias rumo à porta por onde entrei, na pça. Júlio Prestes. Ia dar
meu ingresso, chutar umas pedras e ir andando até a Estação da Luz.
A mesma
base móvel de polícia seguia junto à entrada, ao longe as mesmas multidões do
crack se juntavam, abençoadas pelo Cristo do Liceu, e alguns comércios
terminavam de fechar do outro lado da Duque de Caxias. Os táxis eram poucos: já
eram cinco para as nove. Parei por um momento, cansado, xingando o gerente e o
gorila de terno: paus mandados do caralho... é assim que se estraga uma noite
de uma pessoa cuja vida já não é lá muito emocionante! Não iria em baladas, não
encheria a cara, não jantaria em alguma Família
Mancini. Tudo que eu queria era assistir a um concerto, e
isso porque o preço me cabia: normalmente, essas apresentações são de
cinquenta, cem, duzentos reais. E nem por isso deixam entrar de chinelo...
- Sandália
– me corrigi.
Ao meu lado,
dois senhores respeitáveis tragavam apressados os seus cigarros, quase bitucas,
ante a iminência do segundo sinal. Exfumante, numa situação crítica como
aquela, era a oportunidade para me render: pedi um cigarro, que me concederam,
solícitos. Mas quando me entregavam o isqueiro, uma voz esganiçada e inoportuna
se intrometeu.
- Ô gente
com licença boa noite aí, será que cês num têm um real aí pra mim interar um
lanche?
Me virei,
depois de devolver o isqueiro, enquanto os dois se afastavam para dentro da
Sala como que se ninguém tivesse dito nada: diante de mim tinha um ser
esquelético, envolto em trapos de uma cor indefinida, outrora aparentemente
branca, carregando uma mala rasgada, a tiracolo. O rosto, apesar de sujo, era
claro e até gentil, confluindo para um par de olhos bastante vivos embora frenéticos,
insolentes e até opacos.
- Ô amigo,
deixa eu ver aqui... – solidarizei-me, tirando a carteira. Mas quando abaixei os
olhos para checar os trocados, reparei no chão para os sapatos do camarada
indigente: um par razoavelmente grande de coisas que um dia se chamaram tênis,
de cor igualmente indefinida. Cadarços desfiando, um rombo enorme do lado
esquerdo: era um troço, como se diz. Mas era minha salvação.
Na hora deixei
os trocados de lado, saquei uma nota de dez e entoei a ladainha.
- Amigo, eu
ia te dar umas moedas, mas vou te fazer uma outra proposta: eu preciso muito,
mas muito desse sapato aí seu. Te dou dez mangos por ele. Que tal?
O sujeito
arregalou os olhos numa expressão perplexa, criada, naturalmente, pela proposta
mais inusitada que ele já tinha ouvido na vida: tinha conseguido arrancar os
sapatos de uma fiação tombada na chuva, quase morrendo eletrocutado, e desde
então estava com eles. Certa vez, no pregão do crack, tentou vender, mas não deu.
Seus olhos faiscaram com a possibilidade da grana. Mas, usando o bom senso, percebeu
que estava em posição de negociar.
- Te dou
por vinte.
“Que pilantra!”,
pensei, fuçando a carteira.
- Só tenho
quinze... – blefei olhando as notas, e mostrando o dinheiro com bazófia.
- É nóis –
emendou sem hesitar, e já ia pegando a grana quando eu recuei a mão.
- Tira o
tênis antes, que eu te dou.
O sujeito
me olhou fundo uns dois segundos, e começou a tirar o sapato. Um cheiro de chulé
com lixo se insinuou levemente, mas, pensando no bem da arte, consegui ignorar.
Mal colocou na minha frente, lhe estendi o dinheiro.
- Muito
obrigado – apertei, exaltado, a mão calosa e áspera do indigente.
- Valeu irmão–
entressorriu este, num gesto sincero mas nervoso.
- Esse
sujeito está incomodando o senhor? – rompeu feito um cavalo o segurança daquela
entrada, já querendo defenestrar, rua Mauá abaixo, o pobre do mendigo que tinha
salvo a minha noite.
- Não não
não! – intervim – Muito pelo contrário...
E o
sujeito, encolhido, partiu em paz para fumar seus vinte contos. Apressei-me a
tirar as sandálias, enfiá-las de qualquer jeito na bolsa, e calçar aqueles
trapos que tinha regateado. Fedia realmente um bocado – a chulé, mais do que a
lixo –, mas não era nada insuportável. Só número, que era um pouco menor do que
o meu. Orgulhoso do meu achado, louco para esfregar na cara do staff as minhas manobras, marchei,
vitorioso e calçado, Sala São Paulo adentro, faltando dois minutos para o
começo do concerto. Na bilheteria, o brutamontes e o gordinho ainda tentaram me
barrar.
- Onde é
que o senhor...
Apenas
apontei, e os dois se calaram. O segurança ainda tentou se opor:
- Mas está
todo nojento...! Olha isso! Pegou aí na Cracolândia, né, seu puto!
- Calma aí,
chefia! O regulamento diz que o sapato tem que ser novo? – perguntei, ar de
ingênuo. E enquanto ele pensava em alguma resposta, adentrei, mostrando o
convite, sob os narizes torcidos com o mau cheiro dos casais aristocráticos, terrivelmente
indignados, mas sem qualquer pretexto jurídico para expulsar de lá um vitorioso
par de sapatos malcheirosos.